***O texto contém spoilers de toda a trama e construção narrativa do episódio***
Martha (Hayley Atwell) e Ash (Domhnall Gleeson) são um casal que mora em um casebre no interior do Reino Unido. Vivendo uma vida simples, são felizes ouvindo suas músicas, cozinhando juntos e interagindo com os amigos pelas redes sociais. Um dia, porém, Ash não volta pra casa, e não tarda para que a notícia chegue: o rapaz morreu e agora Martha está sozinha.
No velório, Martha ouve uma amiga falar sobre um sistema de inteligência artificial que, estudando o registro da pessoa por suas mídias sociais, simula ela. O objetivo do programa é facilitar superação da perda. Após relutar, a protagonista adota o sistema, que então, estuda Ash e o simula num chat online. A partir daí, o episódio passa a tratar de um dos temas mais humanos e sensíveis que a arte poderia abordar: a aceitação da morte e o processo de aceitação da perda.
O primeiro detalhe interessante a ser notado no episódio é o uso da fotografia para construir o vazio deixado por Ash na vida da protagonista. Observe, no frame abaixo, como em uma cena quando o casal estava conversando na sala, a iluminação natural deixa o tom de pele dos personagens mais quente e vivo.
Em contrapartida, no frame abaixo, momentos depois, quando Ash já não está mais vivo, a fotografia utiliza iluminação artificial para deixar Martha pálida. Aliada às roupas, cada vez mais pastéis, mostram o vazio existencial da personagem criado pela incapacidade de aceitar e superar a perda de seu amado.
Outro elemento muito bem utilizado é o “plano dentro do plano”. Observe como no frame abaixo, há dois planos no mesmo enquadramento. Um externo, mostrando o ambiente, e outro interno com Martha cada vez mais comprimida. Além de construir o isolamento social da personagem, serve para retratar o muro mental que a protagonista cria para não se relacionar com o mundo.
No que vem abaixo, então, a situação mental de Martha é ainda mais intensa, pois mal vemos seu corpo inteiro. Aos poucos, o isolamento faz com que a personagem se perca dentro de sua própria dor.
Essa solidão é muito bem retratada nas cores. Nesse próximo frame, é perceptível como as roupas da personagem estão alinhadas com a cor do ambiente, mostrando a perda de sua individualidade e a intensificação da dor, principalmente por descobrir que está grávida do falecido namorado.
Ao perceber a dificuldade de Martha de superar a perda do namorado, o sistema de simulação sugere o uso de um nível mais avançado do programa. Além do contato por mensagens e voz, agora a protagonista poderia ter um corpo robótico que simula perfeitamente as características físicas do falecido companheiro.
Percebe-se que a paleta de cores passa a ser predominantemente escura no momento, que remete ao casal unido, mas tanto a pele de Martha quanto do “falso Ash” continuam pálidas: ele, por ser um robô; ela, mesmo se enganando com a cópia, por saber que isso é apenas uma forma de aliviar a sua dor.
Martha até consegue estabelecer alguma relação com o robô, mas obviamente é insuficiente, pois ele não consegue emular reações mais espontâneas que não estejam no histórico online de Ash.
Em certo momento, a personagem esboça alguma força para tentar reagir. É a única cena em que ela é retratada em um “plano dentro de plano” se relacionando com ambos. Observe, no frame abaixo, como quando a protagonista briga com o robô, ela projeta seu corpo para fora da janela, como se seu inconsciente estivesse buscando uma reação, a superação da perda.
Todos esses elementos tornam o episódio, que já é extremamente rico em carga dramática, em um dos mais bem fotografados e dirigidos capítulos de uma série de TV já vistos, dando uma invejável qualidade cinematográfica à Black Mirror.
Infelizmente, diferente de obras lendárias da sétima arte como O Sétimo Selo e Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, que abordam a mesma temática, em Volto Já a trama não encontra seu final feliz. Há um salto temporal, e vemos Martha, anos depois, com sua filha já grande.
Por alguns momentos, acreditamos que a protagonista superou sua perda, mas logo vemos como ela encarou a situação. No começo do episódio, Ash havia dito que sua família guardava fotos de seus falecidos entes queridos no sótão. No futuro, vemos Martha repetir essa atitude.
A personagem não só não conseguiu encarar a realidade, como também a trancou no sótão, fingindo que o problema não existe e permitindo que sua filha, ocasionalmente, vá visitar a cópia do pai que nunca conheceu.
Em seguida, a própria Martha, após respirar fundo e relutar, se junta à filha e ao “boneco” no sótão, no mais angustiante e denso momento de toda a série até aqui. Perceba, nos frames abaixo, como ela aparenta estar bem, mas com o uso de cortes, a direção a coloca comprimida no canto do quadro, sugerindo que, internamente, a mesma desistiu de lutar contra sua dor e abraçou a mentira.
A escolha de isolar o robô (que pode ser visto como um brinquedo pela forma que é tratado) no sótão simboliza não só a fuga de seus próprios demônios, mas também a perda da sanidade por parte de Martha. Em inglês, há a expressão “toys in the attic” para insanidade, justamente o que acontece com a protagonista. Ao ver-se incapaz de sair do luto, ela abraça sua loucura e leva sua filha pelo mesmo caminho. Um final duro e, infelizmente, muito realista.
Volto Já é uma obra intensa, sensível, inteligente e tecnicamente impecável. É, provavelmente, o melhor episódio que Charlie Brooks já escreveu para Black Mirror, tratando de um dos maiores temores do ser humano, algo que vai além de seu caráter e é essencial em sua natureza: o medo da morte e a busca por forças para enfrentar uma perda.