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Bantú Mama

Bantú Mama

Quando o Caribe, a Europa e a África se encontram

Michel Gutwilen - 17 de março de 2021

O que acontece quando uma mulher francesa, que nasceu em Camarões, fica foragida em Santo Domingo, na República Dominicana, e é acolhida por uma família de três irmãos jovens, descendentes do Haiti (povo esse que, por sua vez, também possui origem africana)? Esta é a questão central de Bantú Mama, obra do diretor dominicano Ivan Herrera, que promove o exercício imaginativo deste encontro entre pessoas que carregam traços originários em comum, mas também carregam as particularidades de cada local que imigraram.

A França, enquanto lugar, está presente apenas no primeiro ato, mas se trata de peça fundamental para entender a relação de não-pertencimento da protagonista, Emma (Clarisse Albrecht), ainda que não se gaste muito tempo no aprofundamento dessa questão (uma das consequências da curta duração de 76 minutos). No primeiro plano, ela está em um trem de superfície, sentada na direção contrária ao movimento do ônibus, sendo esse o primeiro indício de que não há uma sintonia com a ordem natural daquele lugar. Logo em seguida, quando ela salta do trem e começa a andar na rua, a câmera se mantêm no veículo, acompanhando-a de dentro, sendo mais um indicativo dessa ruptura. Depois, mostra-se brevemente a solitária rotina de Emma em seu apartamento, sendo sua única companhia um papagaio. Fora isso, os ruídos da grande cidade invadem a varanda de seu apartamento, havendo aqui um trabalho sonoro que evidencia motos e aviões passando. Pelo pouco de informação que se têm, já é possível se perguntar: de que vale estar no “Primeiro Mundo”, em corpo, mas não em sintonia com ele?

O clima nebuloso e a fotografia cinzenta que caracterizam a França logo são contrapostos a paisagem ensolarada e o céu azul da República Dominicana, onde Emma iria passar uma semana de férias (só se entenderá depois o que está por trás disso). Neste cenário paradisíaco, a solidão ainda acompanha a personagem, mas seu espírito parece mais leve, o que fica claro na sequência que foca em sua liberdade espiritual, mostrando ela na imensidão do mar, dançando em uma balada e fazendo tranças em seu cabelo, em oposição ao penteado contido, de coque, que ela usava na Europa. Contudo, após esses breves momentos de leveza, entende-se a motivação de sua ida até aquele país: ela deveria servir como “mula” para trazer drogas da República Dominicana até a Europa. Quando chega ao aeroporto, há uma importante cena em que ela vai ao banheiro e lá se depara com uma mulher e seu filho, vistos através do espelho (em mais uma encenação cuidadosa de Ivan Herrera, pois a visão espelhada aqui representa aquilo que reflete o que ela quer). Trata-se de um momento de tomada de consciência para Emma, ao perceber que é justamente isso que falta a ela: uma companhia afetiva, a formação de uma família, um filho. Infelizmente, esse estalo já é tarde demais e ela é presa logo em seguida, o que significaria o fim de todos os seus sonhos. 

Porém, o destino parece dar outra chance àquela mulher mulher, pois a viatura que a conduzia sofre um acidente, permitindo sua fuga. Vagando sem rumo pela cidade, ela é achada e acolhida por três irmãos (dois adolescentes e um mais novo), que moram em uma favela de Santo Domingo. Teoricamente, a cidade é um dos lugares mais perigosos e violentos do mundo (há uma cena em que Emma pesquisa isso pela internet), só que, no entanto, a visão que o diretor Ivan Herrera quer passar daquela periferia não envolve esse aspecto. Não se vê armas ou tráfico de drogas (apesar de que tudo está sugerido, pelo dinheiro que o irmão mais velho ganha), apenas um lado humano e sem estereótipos, o que envolve desde sequências com as crianças mais novas soltando pipa até os adolescentes brincando de empinar a moto ou fazendo rima. Inclusive, parece haver até um certo desequilíbrio que faz com que o filme fique no meio termo entre um caminhar mais tradicional da narrativa, apenas acompanhando os acontecimentos que envolvem a protagonista, e uma maior liberdade poética, esquecendo a trama por algumas vezes e só se importando em captar a essência daquela comunidade.  

Ainda que se sinta mais acolhida mentalmente na República Dominicana, o grande problema é que, por ser procurada pela polícia, torna-se impossível que Emma fique saindo pela rua constantemente. Assim, muitas das cenas acontecem no espaço interno da casa daquela família. Portanto, Bantú Mama concentra muito da sua força na relação que Emma constrói com aquela família, principalmente com a menina e o irmão mais novo (que vira praticamente seu filho). São em tais cenas que acontecem as trocas culturais chave do filme, neste encontro entre os dois mundos (ao mesmo tempo, o mesmo mundo), como o momento da faixa no cabelo e quando todos pulam juntos. 

Deste modo, novamente surge a questão da liberdade . Se antes a protagonista era livre, mas solitária, agora é o inverso, com sua felicidade não sendo plena. Querendo um futuro melhor para seu irmão mais novo, junto com a necessidade de Emma em fugir dali, T.I.N.A (Scarlet Reyes), que é a irmã mais velha, arranja a fuga dos dois. Curiosamente, espera-se que eles rumem para a Europa, mas o destino se revela como uma ilha paradisíaca, onde eles passam a morar. De fato, esta parece ser a solução perfeita para os dois. Ambos agora são uma família, preenchendo este sonho de Emma e há uma chance de futuro para aquele menino (vemos ele lendo O Pequeno Príncipe) neste lugar que parece rico tanto materialmente quanto espiritualmente. Não à toa, o plano final traça um paralelismo com o avião que Emma vê na sua varanda de Paris, sendo que, dessa vez, ela olha para um pássaro voando. Nada como a harmonia do voo animalesco, parte da natureza, e não aquele elemento vinculado a uma criação humana.


Este texto faz parte da nossa cobertura para a edição de 2021 do SXSW.
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