Sendo o principal pilar da vertente mística do universo Marvel, Doutor Estranho chega às telas com grandes expectativas por parte do público. O encarregado de criar a temática fantasiosa do maior mago dos gibis foi Scott Derrickson, diretor responsável pelo bom O Exorcismo de Emily Rose e pelo mediano remake de O Dia Em Que A Terra Parou. Assim como Thor, o filme é extremamente competente na construção estética, mas acaba sufocado pelo fartura de humor imposta pelo estúdio.
A história acompanha um neurocirurgião, Stephen Strange, que após sofrer um acidente de carro, perde parcialmente o movimento das mãos. A fim de salvar sua carreira, Strange recorre à ajuda mística em Catmandu, numa comunidade secreta chamada Kamar Taj, onde outro homem conseguiu curar um problema até mais grave que o seu.
A trama começa com uma mal inserida cena apresentando o vilão e a Anciã de Tilda Swinton. Em seguida, há a excelente introdução do protagonista, Stephen Strange. O cirurgião, prepotente e desbocado, possui forte carisma graças à segura construção de personagem de Benedict Cumberbatch, que mesmo tendo no roteiro um herói muito semelhante a Tony Stark, consegue com sua atuação dar um tom totalmente diferente, mais sóbrio e discreto, mesmo trazendo os mesmos defeitos do Homem de Ferro seu caráter.
Até o fim do primeiro ato, o humor do filme é muito sutil e agradável, muito graças à acidez do protagonista. No segundo, porém, quando o personagem já está em Kamar Taj e começa seu treinamento para se tornar o herói Doutor Estranho, as piadas começam a ser o principal problema no desenvolvimento narrativo.
Não é novidade para ninguém que o excesso de piadas é parte da assinatura Marvel no cinema. Há, porém, casos em que a comédia é usado em demasia e prejudica a intensidade da obra. Em Vingadores: A Era de Ultron, o humor tira qualquer impacto que poderia esperar-se do clímax do filme. Em Doutor Estranho, o problema é ainda maior.
Nas principais sequências de ação, a veia cômica é inserida incessantemente. Nas dramáticas, é pior. Mesmo nos momentos mais tristes do filme, há piadas antes, durante e depois. O humor exacerbado não só banaliza o divertimento como impede que qualquer cena tenha o impacto necessário. Dificilmente o espectador conseguirá se emocionar ou sentir a imponência dos belos trechos em computação gráfica do filme.
A estética, aliás, é o ponto alto de Doutor Estranho. Tanto os uniformes quanto os cenários dos templos, os efeitos dos feitiços e os traços das diferentes dimensões são, ao mesmo tempo, adequados ao não serem nem muito discretos nem muito exagerados, e atraentes. A transição do mundo frio e realista do começo do filme para o mágico e heroico visto posteriormente também é eficiente. O longa passa a usar ângulos e movimentos de câmera mais ativos e vibrantes, que não só destacam a grandiosidade da magia mas também a imponência do ótimo protagonista.
As cenas de ação, mesmo não trazendo nenhuma novidade nem nos combates e nem na direção, são muito embelezadas pelos efeitos e fotografia colorida. Há, porém, de se destacar como a falta de profundidade do roteiro prejudica o vilão e os coadjuvantes. Por não desenvolver suficientemente nenhum dos personagens de apoio, alguns deles, por necessidade do andamento da trama, possuem arcos dramáticos forçados com mudanças de alinhamento bruscas e rasas.
O tão esperado 3D do filme é sim muito bonito. Não há exageros nem objetos sendo esfregados na cara do espectador. O diretor, sabendo trabalhar a técnica com sutileza, a usa para dar escala e brincar com a profundidade de campo das sequências, proporcionando momentos majestosos no fim do segundo ato. Não há, porém, uma função narrativa aparente. Mesmo engrandecendo o filme, novamente vê-se a falta de domínio para usar o 3D na ambientação e na construção do tom das cenas.
Há de se destacar a trilha sonora, que é, talvez, o único aspecto realmente audacioso do filme. Tentando fugir do óbvio, o compositor Michael Giacchino (Os Incriveis, Ratatouille, Up e Super 8) usa desde cravos à órgãos e sintetizadores para dar um tom mais oriental e experimental ao tema da obra. Infelizmente, até a boa música é prejudicada pela overdose de piadas, que limita a inserção de drama no filme.
Algo que pode vir a ser um problema para a Marvel é a semelhança da figura de Stephen Strange com Tony Stark. Mas, no terceiro ato, há momentos chave que abrem espaço para um enorme salto dramático no desenvolvimento do protagonista. Resta saber se os próximos filmes saberão amadurecer o arrogante mago e transformá-lo na referência de sabedoria que se espera do herói.
Doutor Estranho estabelece o universo místico e seus personagens com muita competência, mas escorrega no excesso de humor e na falta de ousadia do roteiro. O filme acaba sendo só mais uma nova roupagem para a exaustivamente usada “jornada do herói”. Se o público souber aceitar o longa como ele é, uma obra divertida, formulaica e leve, com efeitos especiais caprichados, estética interessante e um cativante protagonista, o entretenimento é garantido.