Em uma sala de operação, após um parto, uma mãe se desespera ao ver os médicos levando seu bebê para um canto da sala, procedimento que aparenta ser o padrão para o parto. Com isso, Arkangel já define um traço da personalidade daquela mulher de forma sucinta: Marie é superprotetora. O episódio corta para um futuro próximo, com a mesma mãe levando sua filha, agora com alguns anos de vida, para passear no parque. Após um momento de distração, a mulher acredita ter perdido a criança, mas a encontra. Entra em cena, então, Arkangel, um sistema de proteção no qual os pais utilizam um tablet para saber o que seus filhos fazem, sentem, consomem e vêem, com direito a filtros de violência e GPS.
Dirigido por Jodie Foster, Arkangel é mais um episódio da série que dispensa mistérios: não há plot twists ou reviravoltas inesperadas. É um capítulo no qual o roteiro abordará os mais variados efeitos de uma criação autoritária e controladora, não muito diferente da que ocorre em boa parte das relações familiares na sociedade atual. Sara, a menina “cobaia” do projeto Arkangel, cresce em um mundo controlado. Seus pensamentos, olhares e atitudes são sempre guiados ou censurados por sua mãe.
É interessante perceber que, conforme imerge no tablet que dá a ela controle sobre as atitudes da filha, Marie se torna uma pessoa reclusa. Desde que acompanhamos Sara em sua segunda fase da infância, não mais vemos sua mãe a acompanhar pelas ruas se não pelas telas. Com isso, Arkangel encontra dois estudos paralelos: o distanciamento entre mãe e filha pela inexistência de experiências conjuntas – que leva à impossibilidade de amadurecimento diante da censura familiar -, e a busca por aprendizado em outros campos: se Marie não se dispõe a guiar sua filha pelo mundo, alguém o fará.
Sara, que mantém o chip do projeto Arkangel em seu corpo para sempre, vive sob o filtro de violência imposto por Marie, que a impede de ver emoções “ruins”, como tristeza e raiva, o que acaba a privando de compreender o peso de momentos importantes, como o falecimento de um ente querido. Sem a experiência na infância, Sara torna-se uma adolescente “crua”, incapacidade de analisar situações de perigo e com o impulso jovem de experimentar coisas novas, o que pode leva-la para caminhos perigosos. Com isso, a direção de Jodie Foster aproveita o fim do filtro (que é removido pela mãe no fim da infância da menina) para por o espectador no olhar de Sara: o mundo torna-se mais violento. A primeira cena da protagonista após a remoção do filtro de violência é justamente uma briga em sua escola, algo que ela nunca havia visto antes.
As cores e iluminação também ajudam a delinear a mudança de tom do episódio. Conforme a relação entre Marie e Sara vai se tornando mais tóxica, a fotografia adquire tons mais frios, que são acompanhados por uma iluminação mais artificial e até pelo figurino: as cores quentes das vestimentas do começo do episódio dão lugar à roupas frias e escuras. Essa mudança estética não acompanha apenas a relação mãe-filha, mas também o processo de descoberta de Sara, que aos poucos sai do mundo “controlado” no qual sua mãe a inseriu e passa a conhecer a realidade, bem diferente do que antes a ela era imposto.
O episódio ainda encontra espaço para sugerir, de forma muito periférica à trama, uma ideia de ciclos. Quando Marie acredita ter pedido sua filha – que representa tudo na vida da mãe -, Foster a filma com uma câmera tremida, que a circula enquanto cortes em excesso imprimem confusão mental ao momento. A mesma forma de filmar e montar se faz presente quando Sara, já em sua adolescência, acredita ter perdido algo de valor, mostrando como o desespero e os fracassos são parte da formação humana.
O grande peso do final de Arkangel é a separação: Marie e Sara trilham caminhos diferentes, e ambas com futuro incerto. Se para Marie, sua filha era a razão de sua existência, para Sara, após seus traumas, nada mais serve de chão. Ambas encerram suas trajetórias de forma que escancara o fracasso das relações familiares nos tempos modernos. Enquanto os pais que apostam no controle para moldar seus filhos – e obviamente falham, pois a bolha sempre estoura -, acreditando inclusive terem o direito e o poder de tomarem decisões que mudariam os rumos da vida, os filhos, desorientados e desacostumados, enfrentarão um mundo hostil sem o mínimo preparo.
O ponto alto de Arkangel é não criar uma tecnologia distante da realidade. Nada que o programa proporciona para uma mãe controladora está distante do que hoje existe na sociedade. Assim como na série, os pais do século XXI acreditam ser capazes (e destinados) a controlar o que seus filhos consomem, pensam, fazem e vêem. A única diferença, porém, é que Black Mirror cria uma ferramenta que não desloque esta relação familiar para um futuro distante, mas próximo e palpável. A única diferença é que, em nossa realidade, os efeitos de uma criação neurótica, doentia e superprotetora costumam não ser tão perceptíveis, surgem como doenças psicossomáticas.