Por ser uma série de histórias independentes, ao longo de quatro temporadas, Black Mirror construiu uma mitologia, um arsenal de recursos narrativos e elementos tecnológicos que marcaram a trajetória da série, como as duplicações de consciência e o grão. Black Museum, último episódio do quarto ano da série, seleciona alguns desses objetos tecnológicos e conta suas histórias. No episódio, a jovem Nish para para abastecer seu carro. Ao lado do posto, está o Black Museum de Rolo Haynes, recheado de artefatos tecnológicos que retratam o lado mais sombrio do ser humano.
Dentro do lugar, Vish é guiada pelo próprio Rolo Haynes, que, orgulhoso de seu museu, a explica os contextos de alguns dos artefatos lá guardados. Rolo introduz, então, duas histórias: a de um médico que utilizava um implante para sentir tudo que seus pacientes sentiam; a de uma mulher em estado vegetativo que teve sua mente transportada para dentro da mente do próprio marido, vivendo lá como uma consciência. Por meio dessas histórias, o roteiro consegue fazer algo notável: inserir legado nas tecnologias. Graças aos feitos de Haynes (que participou da concepção de todos os aparelhos que são mostrados), outras tecnologias foram desenvolvidas. Ideias que poderiam ser vistas como revolucionárias ou cheias de potencial para o bem, são vistas como peças fundamentais de tragédias e fracassos.
Todas as ferramentas trazidas em Black Museum lidam com um tema em comum: o compartilhamento de emoções. O roteiro, porém, não aprofunda os diferentes desdobramentos disso, apenas aposta nas tragédias para criar uma visão pessimista, onde o fracasso das relações humanas é inexorável. O trágico, aliás, é elemento central não só do episódio, mas de toda a série. Aqui ele é construído de maneira eficaz, pois há uma escala. O primeiro artefato apresentado por Haynes visava o bem da humanidade (e levou à tortura e tendências suicidas); o segundo visava aprimorar e aproximar as relações familiares (e, como é de se esperar, teve resultado oposto, servindo de meio para afastar pessoas); o terceiro, porém, é uma “evolução”: é uma junção de todas as tecnologias anteriores, e, já que estamos falando de Black Mirror, é também uma ferramenta que visa apenas a crueldade.
Sim, mesmo que as duas primeiras criações de Haynes visassem o bem comum, o fracasso de ambas levou o inventor a buscar a enriquecer pela dor alheia – e, curiosamente, lá obteve algum sucesso. Aqui, porém, o roteiro de Brooker não trabalha devidamente as motivações de Haynes, e o trata apenas como um vilão caricato e doentio. Para fazer jus ao legado da série, seria muito mais interessante trabalhar como o inventor evoluiu de pesquisador tecnológico para um torturador. Haynes, porém, é simplesmente um narrador que, por seu caráter, torna-se vilão.
Não desperdiçando o potencial do nome, Black Museum aposta, em sua reta final, em expor Haynes como um ser extremamente racista, que desumaniza e objetifica um homem negro em prol de seus ganhos. Transforma-o, literalmente, em um escravo. Com isso, o episódio passa a ser, além de uma exposição de artefatos tecnológicos, um estudo sobre a desconstrução das invenções da série, mostrando como, por trás de boa parte das revoluções tecnológicas apresentadas ao longo dos quatro anos do programa, há racismo. Black Mirror encerra seu quarto ano com uma temporada abaixo das primeiras, que ainda são as melhores, mas que indica a criação de um universo compartilhado cheio de potencial.
Não deixa de ser irônico, também, que o “museu” esteja cheio de tecnologias “futuristas”. Brooker, que ficou famoso por suas sátiras e comentários ácidos, traz, com o empréstimo das palavras de Cazuza, um “museu de grandes novidades’. Em uma série de formato antológico, cujos episódios não especificam tempo ou espaço onde se passam, é um conceito interessante o de um ambiente que exista para lembrar do passado, contendo apenas coisas do futuro, não?