Metalhead, o quinto episódio da quarta temporada de Black Mirror, talvez seja, até aqui, o episódio que agrega mais influências distintas, tanto do cinema quanto das mais recentes pesquisas tecnológicas – que sempre foram satirizadas por Charlie Brooker, o criador. Há duas principais, as quais usarei como base para esta análise: o cinema clássico de terror e os robôs criados pela Boston Dynamics. A trama é ambientada em um mundo com visual pós-apocalíptico. Um trio vai até um armazém em busca de uma caixa quando acaba, sem querer, despertando um robô cão de guarda que os persegue mundo afora.
Esteticamente, o episódio salta aos olhos. A belíssima fotografia em preto e branco têm duas funções: uma narrativa e uma referencial. Na narrativa, cria-se um cenário árido, morto, digno das boas histórias pós-apocalípticas. Na referencial, remete diretamente aos filmes de terror dos anos 50 e 60, principalmente A Noite dos Mortos Vivos, do saudoso George A. Romero – e da filmografia dele também puxa a força de suas histórias de terror, criando com o “robô-cão” um monstro de respeito.
Com a atmosfera de terror definida, surge o monstro implacável que persegue o trio: um cão robótico com inteligência própria e muitos recursos para localizar, caçar e eliminar todos os seres humanos que encontrar. O que torna a máquina tão assustadora não é só sua objetividade e violência, mas a forma natural como o design dela é construído, lembrando muito as já citadas máquinas da Boston Dynamics (vide imagem acima).
Com a inevitável comparação com as máquinas reais, várias teorias surgem para explicar o que há de errado com aquele mundo. Uma das que mais parecem coesas é a de que os humanos, tentando criar uma ferramenta de proteção, desenvolveram uma inteligência artificial que, por erro de programação (ou até má interpretação das orientações humanas), viu na caça e na eliminação de todo homem e mulher vivos sua missão. Seria, então, um terror pós-apocalíptico no qual a criação destruiu o criador.
Para fortalecer a ameaça e imprimir vulnerabilidade às caças do robô, o diretor David Slade faz uso de planos aéreos, que dão a impressão de que os fugitivos estão sendo observados, e planos subjetivos que mostram o ponto de vista das máquinas e mostram a facilidade com que elas alcançam seus alvos. Com isso, surge até a possibilidade de esses personagens estarem sendo caçados e monitorados, via drones, por outra pessoa, que, à distância, estaria comandando o cão-robô.
Por mais que seja esteticamente belo e, por seu minimalismo no roteiro, tematicamente misterioso e provocativo, Metalhead destoa – e muito – de todos os episódios anteriores da saga, não dando pistas suficientes para que haja uma única interpretação definitiva para aquele cenário caótico. A cena final, porém, é capaz de imprimir grande peso ao trazer, de forma sutil, uma crítica a forma como a humanidade, no rumo que está, tende a valorizar cada vez menos os seres e cada vez mais suas posses.
Metalhead pode ser lido como uma crítica ao capitalismo, mas, diante do cenário, é mais objetivo ver a obra como uma crítica ao consumismo e à supervalorização de produtos. É um episódio que funciona como exercício de gênero e, dependendo da interpretação do público, como uma previsão pessimista da relação entre humanos e robôs. Mas que apenas desenha o cenário, sem fazer dele uma ponte para a construção de um conteúdo mais aprofundado.
No tempo em que grandes empresas ainda utilizam trabalho escravo para fabricar produtos de primeira linha – e que o mundo escolha fechar os olhos para isso -, Metalhead é um importante objeto de questionamento acerca da gradual desumanização do ser humano, que passa a ser visto, cada vez mais, como um produto – enquanto os verdadeiros produtos são tratados como entidades.
Como boa parte do público parece ter encontrado dificuldade em compreender o real conteúdo de Metalhead (eu incluso, já que ver séries em maratona nos priva de refletir sobre as obras durante o tempo necessário), deixo aqui uma provocação que pode ajudar alguns a melhor enxergar o mote do capítulo:
O trio tentava invadir o galpão atrás de um urso de pelúcia, certo? E os cães-robô tentam impedi-los. Penso que, para quem projetou os cães, é mais importante proteger ursos de pelúcia do que respeitar a vida humana. Para impedir que os ursinhos fossem roubados, os cães matam as pessoas. É, portanto, sob este escopo, uma crítica à desvalorização da vida humana, tanto na escravização quando no desdém com os miseráveis, enquanto bilhões de dólares são investidos em sistemas de segurança, proteção, e demais tópicos não tão importantes quanto uma vida humana.
Mas, assim como todos os episódios de Black Mirror, Metalhead é uma obra de arte. E, portanto, está aberta a interpretações diferentes. Algumas, mesmo fazendo sentido, já foram rechaçadas pelo próprio criador da série, que disse, em entrevista, que no roteiro original os ursinhos eram simplesmente um brinquedo de infância, o que enfraquece a teoria de que eles seriam avatares a serem utilizados por “cookies” de pessoas.
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