Berlim, 1989. Com a cidade à beira de implodir graças à iminente queda do Muro, agentes soviéticos e ingleses, infiltrados pela KGB e pela MI6, lutam entre si pela posse de uma misteriosa lista que contém nomes de agentes duplos. Lorraine Broughton (Charlize Theron), espiã especialista em combate, infiltração e evacuação, é a responsável para encontrar a lista e, durante sua missão, cruza com distintos e pouco confiáveis agentes dos dois lados da guerra. Sob esse cenário quase apocalíptico, Atômica surge como um blockbuster de ação mesclado com thriller de espionagem, e, por trás da superfície colorida em neon pela linda fotografia, traz uma interessante (e subaproveitada) subtrama sobre emancipação e autodescoberta.
Nas mãos do promissor David Leitch (John Wick e o vindouro Deadpool 2), Atômica começa sem muito interesse em explicar a trama, deixando tal tarefa para diálogos inseridos no meio da ação (que, inicialmente, parece ser o foco). As piadinhas entre os diálogos e as empolgantes sequências lembram bastante o que é feito em John Wick. É possível, inclusive, traçar um interessante paralelo entre John e Lorraine. Se no desenvolvimento do primeiro o interesse em mudar de vida é o mote da trama, em Atômica, vemos uma personagem semelhante, mas um passo atrás na carreira, ainda inserida no mundo de sua profissão, mas que aos poucos se vê desgastada.
Na construção do cenário, a fotografia de Jonathan Sela é fundamental. Com o contraste de iluminação nos ambientes internos e externos, Sela cria uma Berlim prestes a entrar em erupção. Para os takes externos, a pesada e fria fotografia calcada em cinza, azul claro e verde mostra a falta de vida das ruas da cidade, visual muito contrastante com as cenas internas, geralmente “pintadas” com luzes de neon que criam a urgência e jovialidade presente nos bares, boates e restaurantes pelos quais a protagonista passeia em suas missões. Com tal contraste, criam-se dois mundos praticamente opostos, a Berlim das ruas, o “mundo real”, que é praticamente paralelo ao mundo “neon” de violência e sedução pelo qual a protagonista viaja.
Utilizando o mesmo princípio para fotografar a protagonista, o diretor de fotografia Jonathan Sela é capaz de traçar um belo paralelo entre a agente e a cidade de Berlim. Assim como o lugar onde opera como agente infiltrada, Lorraine mostra-se um ser humano prestes a “chutar o balde”. Em sua apresentação, por exemplo, vemos o corpo de Charlize Theron pintado de azul neon, para, poucos momentos depois, o choque com uma luz branca nos expor a real situação da heroína, cheia de marcas e feridas. Atômica é, por trás de um thriller de espionagem e ação, uma obra sobre o esgotamento emocional de sua protagonista, que busca fugir antes que, assim como Berlim, imploda.
No meio de suas cenas de ação de investigação, Atômica aos poucos deixa de ser uma obra puramente de ação e passa a focar no jogo de traição e espionagem. Infelizmente, é justamente quando o filme começa a perder seu fôlego. Focando em conflitos que não são bem desenvolvidos, as tramas “políticas” do longa passam a ser apenas desculpa para a existência das fantásticas cenas de ação. E até aí, tudo bem; o problema é que, em seu ato final, Atômica apoia-se justamente nas reviravoltas da espionagem para criar seu clímax. Ao fazer isso sem que o roteiro desenvolva completamente os conflitos, o resultado é uma conclusão gigantesca e confusa, onde o espectador pode encontrar-se perdido quanto às reais afiliações dos agentes.
A história é situada em dois momentos diferentes: o filme apresenta cenas durante a missão, que são a ala mais agitada do filme, trazendo desenvolvimento e ação, e também cenas no “pós-missão”, quando Lorraine é interrogada por seus superiores, possibilitando que os diálogos desenvolvam a trama. Aqui, porém, entra outro problema: o filme pouco respira em sua primeira metade, embalando muitos picos dramáticos que sufocam o desenvolvimento. No meio do segundo ato, surgem problemas maiores. Com a adição da personagem de Sofia Boutella, Atômica torna-se uma obra mais focada na fuga e na busca por liberdade, retratando uma protagonista que se sente sufocada e ameaçada por todos ao seu redor. Mas, ao mesmo tempo em que sugere tal pano de fundo, a obra depende cada vez mais da trama política para funcionar. O resultado é que o paralelo entre a heroína e a cidade torna-se cada vez mais sutil e acaba cedendo espaço aos múltiplos plot-twists, que em nada enriquecem o desenvolvimento da protagonista e deixam o longa inchado.
Se desenvolvimento de personagens não parece ser o forte de David Leitch, o americano compensa (e muito) na ação. Assim como fez em John Wick, o cineasta trabalha o plano, poupando os conflitos de um desnecessário excesso de cortes e câmeras tremidas. A ação acontece e o espectador compreende tanto as ações quanto a geografia dos acontecimentos, possibilitando que o público antecipe os movimentos no combate e embarque na constante tensão que permeia as lutas. Leitch ainda é sagaz ao utilizar um assombroso plano-sequência que empolga pelo exímio técnico e pelo impacto, já que ocorre para retratar um momento da trama onde dois personagens precisam lutar contra o tempo, e a manutenção de um só plano (aliás, a ilusão dessa manutenção) torna a passagem muito mais urgente e impactante.
Também é notável que Leitch utilize planos-sequência ou planos longos para retratar grandes esforços da protagonista logo antes de mostrar o fracasso de suas missões, possibilitando que o espectador sinta, graças à sufocante sequência, o impacto do insucesso, voltando a fortalecer o arco de erupção psicológica da heroína. Infelizmente, conforme desloca o estudo psicológico de Lorraine para o background da narrativa, Atômica puxa a trama política para a luz principal, fazendo com que todo o esforço para retratar a fragilidade física e psicológica de Lorraine seja menosprezado em prol de uma não tão interessante trama política.
Atômica mostra um punhado de ideias interessantes e uma estética admirável. Infelizmente, no meio de tantas luzes, cores, grafites e close-ups no rosto de Charlize Theron, a obra se esquece de desenvolver sua história o suficiente para que Lorraine apresente suas camadas. Sua insatisfação e ódio são palpáveis e críveis, mas nunca aprofundados, fazendo com que a protagonista se torne uma personagem com pouca personalidade. Ao tentar funcionar em várias searas dramáticas e desenvolvê-las ao mesmo tempo, Atômica torna-se um blockbuster divertido, bem feito, mas confuso, inchado e incapaz de extrair o máximo de suas próprias ideias. Sem sombra de dúvida, é uma obra empolgante, mas que claramente traz um potencial estudo de personagem que é subaproveitado em prol de plot twists mirabolantes e não tão interessantes.