Deuses Americanos 1×08 – Come to Jesus (season finale)

Deuses Americanos 1×08 – Come to Jesus (season finale)

Gustavo Pereira - 19 de junho de 2017

“Come to Jesus” é precedido por “A Prayer for Mad Sweeney”. Para ler a crítica do sétimo episódio de Deuses Americanos, clique aqui.

Tudo o que será dito sobre a season finale de Deuses Americanos pode ser resumido a uma onomatopeia: “AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA”. Desde seu piloto, acordar mais cedo às segundas-feiras virou um ritual sacro. Se a motivação inicial foi assistir à adaptação de uma das principais obras de Neil Gaiman, em pouco tempo a série ganhou alma própria, podendo ser apreciada tanto pelos entusiastas do livro quanto pelos “surfistas de canal”, que ocasionalmente esbarram em algo para se verem pouco depois presos a isso.

As ferramentas de linguagem apresentadas e desenvolvidas ao longo dos sete episódios iniciais atingiram um nível de fluidez pleno. Dessa forma, podemos identificar personagens por enquadramentos, músicas, cores e objetos. Isso é bom storytelling: contar sua história não apenas com palavras, mas com todo o resto que sua mídia oferece.

Exemplo prático: a série havia estabelecido o udo de planos-detalhe como índices narrativos, substituindo os personagens for gatilhos audiovisuais que remetam a eles. Nesse caso, o jazz e as aranhas nos dizem, imediatamente, que vamos ver Mr. Nancy.

Floria Sigismondi alterna os tons de “Come to Jesus” de forma pensada e orgânica. Desenvolvemos o hábito de começar cada episódio com a história da chegada de um Velho Deus aos Estados Unidos, então é feita uma brincadeira metalinguística com isso; imediatamente após, Bilquis volta a ser trabalhada, pela primeira vez de forma mais cuidadosa. Diferente dos outros, que chegaram ao “Novo Mundo” pela crença de seus fiéis, ela veio em fuga. E a sensibilidade com que Bryan Fuller e Michael Green desenvolvem esta narrativa, traçando paralelos óbvios, mas ao mesmo tempo tão atuais sobre como o poder dos homens é construído a partir da destruição do poder das mulheres, como a raiva movimenta este mundo masculinizado e a opressão tem um efeito de igual força e direção, mas em sentido oposto à adoração, faz com que nos sintamos mal por Bilquis. Mais do que isso: responsáveis pela sua condição.

Sigismondi fecha caprichosamente este arco alternando câmeras subjetivas, deixando perfeitamente clara a relação de poder entre Novos e Velhos Deuses

No livro, fica implícito que Neil Gaiman construiu Deuses Americanos em bases teóricas marxistas, algo que é ainda mais claro na série. Exclua-se dessa análise o julgamento de valor: não estou defendendo ou criticando a forma como Marx descreveu o mundo, apenas expondo-a para o melhor entendimento da construção dos personagens e seus respectivos papéis na trama. Não é necessário concordar com uma corrente de pensamento para conhecê-la.

Quando Mídia (dessa vez, uma releitura magnífica de Judy Garland no filme de 1948 Desfile de Páscoa) diz a Wednesday que os Novos Deuses são “distribuidores, plataforma e entrega”, os coloca ao lado do patronato. Para Marx, a grande injustiça do capitalismo reside no fato dos patrões serem donos dos meios de produção e determinarem quanto vale a mão-de-obra, enquanto a classe operária era a real geradora de riqueza, uma vez que o patrão não trabalha. Wednesday assume, abertamente, o lado da classe trabalhadora: “há adoração de sobra, desde que seja redistribuída”. Se, de um lado, os Novos Deuses controlam o fluxo de informações e criam as chamadas pós-verdades, os Velhos Deuses questionam essa infraestrutura que depende dos seus poderes para se sustentar. Uma luta de classes. A nível divino, mas uma luta de classes.

Em “A Prayer for Mad Sweeney”, as transições entre cenas foram feitas com “meios de transporte”, o telefone transportando a voz e a cerveja, a consciência. Em “Come to Jesus”, a montagem aposta em silhuetas: objetos distintos com formas semelhantes, associando momentos na linha temporal.

Esse modus operandi não serve apenas para relacionar dois eventos, mas também para “linkar” um sonho à realidade, dando indícios de que existem figuras presentes em ambos

A essa altura, é difícil imaginar que alguém tenha se surpreendido com a verdadeira identidade de Wednesday sendo revelada. Creio que mesmo os produtores sabiam que este foi o maior Segredo de Polichinelo da TV este século. Exatamente por isso, sua apresentação é tão grandiosa, tão propositalmente demorada, que se torna quase numa carícia para aqueles que esperavam por ela. Ian McShane cresce em poder a cada palavra proferida. Ele se torna num deus temido conforme diz que o é. “Deuses são reais, se acredita neles”.

A forma como Deuses Americanos segue usando cores para transmitir informações merece registro: Ostara, a deusa da Páscoa, símbolo da ressurreição, é ligada a tons saturados, iluminados e contrastantes (quentes se misturando com frias, mas sempre cores “puras”)

Se há um momento em que ganchos são permitidos é aos finais de cada temporada. Come to Jesus deixa muitas questões para a sequência de Deuses Americanos: porque Wednesday precisava de Shadow? Qual será o destino de Laura? Como Velhos e Novos Deuses resolverão seu conflito? A série teve sua segunda temporada confirmada antes mesmo da primeira estrear, então é uma questão de tempo para saber. Nesse intervalo, compre o livro de Gaiman e leia.

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