Para ler a crítica de “Jogada de Mestre”, primeiro episódio da terceira temporada de Narcos, clique aqui. O texto a seguir não tem spoilers.
Um déjà vu de quase dez horas. Em que pesem as qualidades de elenco, equipe técnica e de uma história que realmente parece ficção de tão surreal, não há nada de novo nos dez episódios de Narcos disponibilizados pela Netflix em 2017.
Acontecimentos imediatamente após a morte de Pablo Escobar, o rockstar da cocaína na década de 1980 interpretado por Wagner Moura, como a ascensão do Cartel de Cali e a posse de um novo presidente na Colômbia, trazem o agente Javier Peña (Pedro Pascal) de volta ao olho do furacão da guerra às drogas. Sem a presença de seu antigo parceiro Murphy (Boyd Holbrook), ele é o principal agente da DEA em Cali. Narcos se apresenta, desde o primeiro episódio, como uma série em que a história é mais importante do que os personagens. Acima de protagonistas e antagonistas, está o narcotráfico e todas as nuances do sistema que se propõe a combatê-lo, mas depende dele para sobreviver.
O problema dessa escolha é enfraquecer um ponto forte das temporadas anteriores: as consequências particulares nas vidas de quem luta esta guerra. As qualidades interpretativas de Moura conferiam a Escobar um perfil de herói trágico, o homem que se tornou mau tentando fazer o bem, mas mais uma figura reativa do que puramente sanguinária, enquanto Murphy sacrificou seu casamento para perseguí-lo. Havia ali uma dinâmica de retroalimentação, em que heróis se definiam pelos vilões e vice-versa.
O arco desenvolvido nesta temporada também é muito mais horizontal quando comparado ao das duas anteriores. Isso simboliza o principal questionamento feito por Narcos: sempre haverá outro bandido para ser caçado e outros agentes para caçá-lo. O efeito colateral é ter uma história que basicamente se repete, sendo possível imaginar o futuro dos personagens, com boa margem de precisão, antes da metade da temporada. Se o principal cartel de cocaína do mundo anuncia que vai se “aposentar” nos próximos seis meses, é claro que o agente Peña usará este tempo para tentar prender os chefões antes que eles consigam preservar bens e liberdade.
Dos quatro “Cavalheiros de Cali”, Narcos investe mesmo nos irmãos Rodríguez-Orejuela. Gilberto (Damián Alcázar) e Miguel (Francisco Denis) têm visões diferentes sobre a questão da aposentadoria, com Gilberto prezando pelo controle absoluto da situação, de onde vem seu apelido “Enxadrista”, e Miguel demonstrando ressentimento por entregar o poder antes de exercê-lo, pois é seu irmão quem toma as decisões pelos quatro. Enquanto essa dinâmica não mostra uma ruptura clara, pois em nenhum momento os Rodríguez se colocam um contra o outro, os dois “cavalheiros” restantes, Chepe (Pêpê Rapazote) e Pacho (Alberto Ammann) são subutilizados.
Pacho tinha o potencial mais interessante, pois sua homossexualidade em um ambiente machista como o do narcotráfico latino poderia humanizá-lo aos olhos do público, lhe dando um certo ar de vulnerabilidade, uma necessidade orgânica de ser brutal para não demonstrar fraqueza. Mas a quantidade reduzida de cenas não nos dá chance de compreender plenamente suas lutas internas. Quando busca defender os interesses do irmão, não sentimos uma dor ou sede de vingança diferente de qualquer outra. Pacho se torna unidimensional, tendo Ammann que empregar toda a sua capacidade cênica para conferir-lhe alguma credibilidade. Chepe consegue ser ainda pior, com apenas três cenas na temporada inteira em que é protagonista: em duas, é brutal; na terceira, demonstra poder. Não há uma construção de personagem que torne o modus operandi de cada “cavalheiro” único.
Na parte dos “mocinhos”, os dois agentes que assumem as ações de campo não chegam perto do que foi a dupla Murphy-Peña. Feistl (Michael Stahl-David) e Van Ness (Matt Whelan) são os estereótipos do agente idealista e burocrático, respectivamente: um praticamente implora para atuar em campo, enquanto o outro fica indignado por ter sido empurrado para ele pelo parceiro. Eles existem para cumprir uma função dentro do roteiro e nada mais. Aproximá-los de Jorge (Matias Varela) é uma tentativa de transformá-los em personagens mais próximos de pessoas, que precisem tomar decisões no calor da emoção. Mas o tempo inteiro eles são meros “garotos de recado” de Peña.
Sobre o roteiro, há uma necessidade de criar tensão para que a série não se resolva antes do tempo. Quando um desafio é superado, outro surge imediatamente, de forma que a história não avance demais. Na primeira corrida contra o tempo para que Peña consiga uma prova antes de ser tirado do caso, funciona: na terceira, não. Aspectos promissores são apenas jogados ao invés de desenvolvidos, como os filhos dos “Cavalheiros” David e Nicolás ou as diferentes formas com que as mulheres da série lidam com a guerra. Narcos aposta em situações artificiais para prender a atenção do espectador, como uma batida policial que só se torna possível porque uma peça-chave do Cartel de Cali é mais estúpido do que se pode considerar verossímil.
O estilo da série, reinterpretando fatos e usando de narração em off para situar a audiência, passa do ponto nesta temporada. Deixa de ser um facilitador pontual para se tornar um explicador regular das tramas em cada episódio. A diferença em relação às temporadas anteriores está na quantidade: Narcos abusa desse recurso. A fotografia se mantém um diferencial da série, sempre alternando tons quentes e frios, luz e sombras, dando aos personagens uma densidade que, em linhas gerais, o roteiro lhes tira. A fotografia também faz escolhas sutis e certeiras, como na reunião do Cartel de Cali após um revés filmada com steadycam em vez de tripé, dando ao ambiente uma pequena turbulência, exatamente quando os cartelistas afirmam que nada mudou.
A edição organiza grandes sequências de ação de forma que personagens em diferentes lugares pareçam estar juntos. Isso faz sentido, porque os acontecimentos realmente estão relacionados. Destaque para uma série de execuções que faz lembrar o final de O Poderoso Chefão. Faltou uma direção que colocasse o espectador dentro das cenas, algo que José Padilha faz como poucos atualmente (o diretor de Tropa de Elite se limitou à produção-executiva).
O que realmente torna a terceira temporada de Narcos abaixo das predecessoras é a falta de um real motivo para existir. Os profissionais envolvidos continuam, as adições de elenco não comprometem, mas falta uma história que justifique retornarmos para este mundo de poder, corrupção, glamour e morte. E não há série de televisão que se sustente sem uma história relevante. Uma que não deixe claro nos primeiros cinco minutos o que vai acontecer com seu protagonista. Tire suas conclusões assistindo à nova temporada de Narcos clicando aqui.