A crítica de “H de herói”, primeiro episódio de Os Defensores, está aqui. O texto abaixo fala da primeira temporada da nova série da Marvel/Netflix e não contém spoilers.
Uma obra de ficção, seja ela exibida em cinema, televisão, papel ou streaming, vale mais pela forma como conta a sua história do que pela história em si. Filmes de assalto a banco ou livros de fantasia surgem aos borbotões, sendo alguns melhores do que outros.
A história de Os Defensores já foi contada em pelo menos quatro oportunidades recentes. Pode-se comparar o Tentáculo à Liga das Sombras de Batman Begins e a ameaça de destruição total de uma cidade à primeira temporada de Arrow, Os Vingadores, Esquadrão Suicida (estamos sempre falando desse filme, não é mesmo?) e ao próprio Batman Begins. O que torna a série da Netflix válida não é a trama central, mas a forma como ela a usa para desenvolver personagens, principalmente pelo conflito entre pontos de vista.
Esse tipo de dinâmica social é, senão a melhor, uma das melhores formas para evoluir personagens dentro de uma narrativa: trabalhando elementos consonantes e dissonantes entre pares, o estreitamento dos laços se torna fluído, é mais fácil entender os limites de cada um e escolhas precisarão ser feitas. Onde um falha, o outro tem êxito. Essa é a essência de uma equipe.
Esse foi um dos maiores pecados de Esquadrão Suicida: a falta de comparativos entre personagens acostumados ao trabalho solitário repentinamente obrigados a cooperar entre si. O Pistoleiro e o Capitão Bumerangue têm habilidades manuais acima da média, mas nenhuma cena os mostra combinando essas habilidades para superar uma adversidade; Rick Flag e Arlequina são apaixonados por pessoas tóxicas, mas nenhum dos dois vê isso no outro. As possibilidades beiram o infinito e foram todas desperdiçadas. Já em Os Defensores, praticamente toda oportunidade para desenvolver os personagens dessa forma é aproveitada.
Uma consequência lógica dessa escolha é a existência de alguns conflitos melhores do que outros, pois a série tem personagens melhores do que outros. Luke Cage e Danny Rand são pessoas com força sobre-humana, em busca do sentimento de pertencimento e comprometidos com a defesa de suas comunidades, mas enquanto o primeiro sempre teve de enfrentar os obstáculos de um homem negro da periferia, o segundo é um bilionário privilegiado; Matt Murdock e Jessica Jones não conseguem separar suas vidas particulares de suas lutas contra o crime, mas se Murdock está disposto a se afastar daqueles que ama para cumprir com seu dever sem colocá-las em risco, Jones ativamente nega sua condição de heroína e faz de tudo para se manter fora da ação.
A oposição mais interessante é entre Murdock e Rand, este compreendendo que o dever exige sacrifícios (a velha “Lei Tio Ben”), algo que ele esqueceu ao abandonar K’un-Lun para descobrir a verdade sobre seu passado, e que o Demolidor é incapaz de fazer para ter uma vida minimamente normal. Dividindo o protagonismo, Danny Rand melhora como personagem. Comparado ao demais, entretanto, ainda é o elo fraco de Os Defensores, pois Finn Jones não aprendeu lutar e continua sendo um ator limitado. Todas as emoções que ele passa se confundem com tédio.
No quesito elenco, Charlie Cox assume o protagonismo com a mesma naturalidade que o Demolidor assume a liderança do grupo. Krysten Ritter é simplesmente o oposto de Jones, com um carisma natural emanando a cada vez que se impõe sobre qualquer um que tente lhe dizer o que fazer ou como se comportar. Mike Colter é outro ator que melhora quando tem a responsabilidade do protagonismo compartilhada, desenvolvendo uma sintonia cênica imediata com os demais. Elodie Yung, mesmo com a desculpa de que sua Elektra está “alterada” pelos eventos da segunda temporada de Demolidor, é uma das antagonistas mais insossas do Universo Cinematográfico Marvel (compare sua atuação com a de Michael Fassbender em Prometheus e Alien: Covenant). Já Jessica Henwick, Rosario Dawson e Simone Missick são responsáveis pelos momentos “vergonha alheia” da série.
O problema da trinca de atrizes não é exclusivamente delas, acometendo mesmo a excelente Sigourney Weaver: em determinado ponto, Os Defensores começa a andar em círculos, repetir situações e, falando abertamente, encher linguiça: após um episódio inteiro dentro de um restaurante, o seguinte se dá quase que na totalidade dentro de um prédio abandonado. Weaver faz seu melhor, mas em algum ponto, as motivações e os obstáculos de Alexandra se esgotam. Misty é a pior detetive que já existiu e as divagações de Claire e Colleen sobre o suporte emocional que representam para Luke e Danny dão náuseas.
Comparado a Demolidor, que teve pelo menos uma cena de luta marcante em cada temporada, Os Defensores decepciona: a batalha final, que deveria corresponder visualmente à tensão trabalhada no roteiro, nada mais é do que um amontoado de extras brigando no escuro para facilitar o uso de dublês. Também não há orquestração de movimentos, o que torna tudo genérico, como um filme de ação da Sessão de Sábado.
Feitas essas considerações, é importante salientar que a primeira temporada de Os Defensores tem um saldo final positivo: se há personagens fracos e conveniências no roteiro, a fotografia trabalha para construir os protagonistas e, posteriormente, para agrupá-los como uma equipe; sempre que possível, movimentos incomuns de câmera colocam o espectador no papel de detetive, acompanhando os quatro heróis em corredores, ruas movimentadas ou momentos contemplativos; a transição entre cenas usa de forma perfeitamente sensata o metrô, pois nada liga melhor diferentes pontos da cidade de Nova York do que ele. Fica até difícil entender porque a ação é tão pasteurizada, quando momentos sem nenhum apelo narrativo óbvio se tornam icônicos, como esse:
Os Defensores tem um conteúdo que não compromete embrulhado numa forma que quase encanta. Assista à temporada completa clicando aqui.