Os personagens de “A Sombra do Pai” estão de luto. A menina Dalva (Nina Medeiros) perdeu a mãe. Seu pai, Jorge (Júlio Machado), a esposa que amava. Conforme ele afunda na tristeza, aumentada com o suicídio de um colega de trabalho, suas vidas passam a ser atravessadas por um desejo pelo sobrenatural. Estimulada pela tia (Luciana Paes), Dalva acredita possuir o dom de fazer suas vontades acontecerem, até trazer de volta quem morreu. Ressuscitar a mãe se torna seu principal objetivo. Já Jorge alucina com a presença fantasmagórica do colega, enquanto se transforma numa espécie de zumbi, inclusive na aparência cada vez mais cadavérica.
O filme, portanto, trata diretamente de mortos que voltam à vida. Ou ao menos do quanto o desejo de tornar isso possível faz parte da existência humana. Não à toa, a diretora Gabriela Amaral Almeida cita abertamente dois clássicos do gênero horror com essa temática – “A Noite dos Mortos Vivos” (1968) e “Cemitério Maldito” (1989) são vistos na TV por Dalva – e, em momentos chave, dialoga visualmente com “Um Corpo que Cai” (1958), cujo protagonista busca “ressuscitar” a amada. Há duas cenas específicas que estabelecem esse contato: na primeira, Jorge desce correndo as escadas da obra em que trabalha – enquadradas de cima pela câmera de Almeida, remetendo aos célebres planos de vertigem com dolly zoom de “Um Corpo que Cai” – para, como o protagonista da obra-prima de Hitchcock, tentar salvar alguém da morte; na segunda, um segundo corpo despenca do alto desse mesmo local, um novo suicídio provocado pela influência do primeiro – como Madeleine (Kim Novak) e sua ancestral Carlota Valdez no filme de 1958.
No entanto, Almeida faz uso bastante orgânico dessas referências, submetendo-as a um olhar para o sobrenatural muito próprio da cultura brasileira e se mantendo sempre atenta, primordialmente, ao desenvolvimento dramático de seus personagens. Há em “A Sombra do Pai” toda uma relação desses últimos com objetos de memória que não só trazem à tona afetos, mas remetem a superstições e crendices populares. A diretora também é muito competente na instalação de uma atmosfera macabra no filme, intensificada nas cenas em que a protagonista interage com outras crianças, exercitando o poder que acredita ter – sobretudo quando uma colega parece ter lhe roubado esse dom com intentos bastante cruéis.
Nesse sentido, “A Sombra do Pai” tem uma interessante proximidade com outros exemplares recentes do cinema de horror feito em São Paulo, sobretudo pelas mãos de Marco Dutra e Juliana Rojas. Filmes como “Trabalhar Cansa” (2011), “Quando Eu Era Vivo” (2014) – aliás, corroteirizado por Almeida –, “Sinfonia da Necrópole” (2014) e “As Boas Maneiras” (2017) mergulham no gênero, em suas referências clássicas advindas sobretudo do cinema de língua inglesa, mas nunca perdem de vista especificidades do imaginário sobrenatural brasileiro, componentes culturais que lhes dão uma cara própria.
Almeida, aliás, se aproxima novamente de “Trabalhar Cansa” no uso do gênero para falar de questões sociais candentes no presente do país, já que ambos tocam no desemprego, seus efeitos sobre a autoestima de homens em processo de degradação mental. No caso de “A Sombra do Pai”, o luto acaba se referindo, mesmo que tangencialmente, também à decadência experimentada pelo Brasil em tempos recentes.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para o 51º Festival de Brasília. Para ler outros textos de nossa cobertura, clique aqui.