Na última semana o Twitter levantou uma questão, no mínimo, curiosa: seria o “Choque de Cultura”, esquete da TV Quase hospedada no canal do Omelete no YouTube, um programa de “humor hétero”?
É impossível testar a validade de uma tese sem antes conhecer as variáveis da equação. O gênero “humor hétero” não existe formalmente, então tomarei a liberdade de defini-lo como “humor produzido por e para heterossexuais”. Dessa forma, este artigo estabelece como base de tudo o que virá a seguir que o “humor hétero” usa de um repertório léxico/situacional supostamente comum à vida dos heterossexuais. Mais especificamente, à vida dos homens heterossexuais.
O “problema” dessa definição é a falta de problema: todo produto de entretenimento tem um público-alvo e isso, num cenário ideal, não é excludente. Minha mãe acha “Dois Homens e Meio” uma série hilária, enquanto eu me divirto assistindo a “Sex and the City” (não me peçam opiniões sobre a série, eu apenas vejo episódios avulsos). Produções voltadas para um segmento da sociedade podem agradar a outros segmentos de forma involuntária. Algo, inclusive, saudável.
Se, em lugar de chamar as apresentadoras de “promíscuas” (na verdade, usam outra palavra com “p”…), os “machos-alfa” sentassem na frente da televisão e assistissem ao saudoso “Papo Calcinha”, certamente aprenderiam uma forma ou duas de agradar suas parceiras na hora do sexo, algo que não acontece regularmente. Podemos gostar mais ou menos de determinados conteúdos de acordo com quem somos, mas ter o radar atento para o que agrada àqueles que pensam diferente de nós não apenas nos torna pessoas de mente mais aberta: é fundamental para manter as relações sociais num nível mínimo de civilidade que evite as discussões de terminarem em ofensas pessoais baseadas no que cada um gosta ou deixa de gostar. O mundo real não é uma bolha da internet, onde só falamos com nossos iguais. Ainda bem.
Ainda não. Após definir que “humor hétero” não é, assim como qualquer produção voltada a um público-alvo, algo necessariamente negativo, é preciso delimitar as exceções. Como o Brasil mal é um país, mais se parecendo com uma grande franquia do McDonald’s, vamos usar a definição de uma sociedade mais evoluída:
A mídia agora desempenha um papel essencial na: expressão e continuidade da identidade nacional e cultural; o reflexo das formas de diversidade regional, étnica e outras; e a “união”, pela intercomunicação, da sociedade como um todo e de comunidades particulares e elementos constituintes.
Universidade de Leicester. “O que é regulação da mídia?“, 2012. Tradução livre.
Sociedades que prezam pelo bem estar coletivo entendem que as mídias de massa (televisão, rádio, jornal, revistas e, desde o começo desta década, a internet) devem propagar a cultura local, respeitar a diversidade e unir o povo por meio da circulação destes conteúdos. Usando por base a definição da Universidade de Leicester, pode-se assumir que uma produção cultural está em desacordo com o interesse público quando desrespeita um ou mais destes aspectos.
No objeto de estudo específico, o “Choque de Cultura”, seu “humor hétero” estaria em desacordo com o interesse público se fosse excludente. E a única forma de um humor direcionado – teoricamente – para um grupo de uma orientação sexual específica seria se ele desrespeitasse grupo(s) de outra(s). Sendo LGBTQ-fóbico ou, em questões de gênero, machista. Mas os grandes nomes do transporte alternativo fazem isso?
O “Choque de Cultura” é uma sátira. Interpretá-lo como um programa sério é, antes de tudo, uma miopia semântica. Um elogio (este artigo explicará o porquê no próximo tópico), mas um equívoco. Ou, como o Doutor House brilhantemente intuiu na sétima temporada, um sintoma de envenenamento por cobalto.
Ao colocar motoristas de van da Região Metropolitana do Rio de Janeiro para falar sobre cinema, o “Choque de Cultura” vulgariza a função do crítico. Tira-os de seus pedestais e mostra, por meio do humor (hétero?), que qualquer um pode ver um filme e falar algo estapafúrdio sobre ele. “E como tem especialista falando isso aí”, diria Rogerinho do Ingá. Precisamente este é o ponto. Citando outro grande pensador pós-moderno (Homer Simpson), “é engraçado porque é verdade”.
O crítico de cinema, salvo honrosas exceções, é uma figura empolada, que não busca dar ao seu leitor as ferramentas para ele próprio analisar os filmes. Ao contrário: se coloca no papel de guardião das chaves para o conhecimento, ditando o que é e o que não é bom, usando critérios que até ele tem dificuldade para explicar. Quando a única crítica a “Velozes e Furiosos 5” é que “filmaram o filme no Rio de Janeiro e não tem um racha na Estrada do Catonho”, é inevitável lembrar de figuras que, sistematicamente, atacam determinados diretores simplesmente porque não gostam deles. Por justaposição, os motoristas pilotos (conheço o trabalho e sei da seriedade) enaltecem determinados filmes simplesmente porque gostam deles. E se, eventualmente, as opiniões dos maiores nomes do transporte alternativo são julgadas como verdadeiras, este é o maior elogio que o “Choque de Cultura” pode receber.
O Plano Aberto – ainda – não tem o WhatsApp do Stephen King, então foi preciso improvisar: com o seu excelente “Sobre A Escrita” (leitura recomendadíssima, compre aqui) em mãos, vamos analisar o que o autor vencedor da National Medal of Arts tem a dizer sobre construção de histórias.
Gosto de colocar um grupo de personagens (…) em algum tipo de situação desagradável e vê-los tentando se libertar. Meu trabalho não é ajudá-los a encontrar uma saída, ou manipulá-los para que fiquem a salvo (…), mas sim acompanhar o que acontece e depois colocar no papel.
A situação vem primeiro. Os personagens — sempre rasos e sem características, no início — vêm depois. (…) Geralmente tenho uma ideia do possível final, mas nunca pedi a um grupo de personagens que fizessem as coisas do meu jeito. Pelo contrário, quero que façam as coisas do jeito deles. (…) Na maioria dos casos, porém, (o final) é algo que eu jamais esperava.Stephen King. “Sobre A Escrita”, 2015. Suma de Letras
King apoia sua ficção num tripé de narração, descrição e diálogo. Ele também pontua a necessidade vital de impedir que seus personagens se pareçam com personagens, “em vez de gente de verdade”. E o ponto-chave para escrever sobre “gente de verdade” é sustentar a ficção por uma realidade conhecida e vivida pelo autor. Em outras palavras, a boa ficção é feita pelos que saem das próprias bolhas. E, se um personagem é crível a ponto de receber críticas como se fosse uma pessoa real, parabéns ao autor.
No audiovisual, a narração e a descrição ficam restritas ao roteiro. O diálogo, que “dá vida aos personagens através do discurso” (ainda citando King), é a parte mais evidente ao espectador. É ele o responsável por tornar os personagens em “gente de verdade”. E motoristas de van só serão críveis se falarem e se portarem como motoristas de van. O “Choque de Cultura” tem alguns dos melhores diálogos de humor da internet brasileira porque é assombrosamente honesto.
Não há forma de averiguar a veracidade de um tipo que não seja estudo de campo. Quem só anda de Uber não sabe, mas basta entrar numa Copacabana-Rocinha de madrugada (antes da Linha 4 do metrô, minha única forma de voltar pra casa depois das noitadas) ou numa Cascadura-Gávea de manhã cedo (quanto mais cedo, maior era a chance de ir pra faculdade sentado) para saber que “Velozes e Furiosos” faz sucesso e o inconformismo com a “indústria da multa” é real.
Sempre existirão exceções, mas o humor satírico trabalha exatamente com o estereótipo mais puro, pois é ele que oferece as melhores soluções cômicas. Um motorista de Kombi indignado com o companheiro de programa que tem um relacionamento amoroso com sua irmã reflete o ambiente machista e patriarcal no qual ele está inserido. E este motorista ser exatamente o “especialista em Cinema” é uma cutucada no machismo estrutural presente, inclusive, nas pessoas com alto grau de instrução e especialização.
Também vale ressaltar a evolução de Rogerinho, Maurílio, Julinho e Renan ao longo dos episódios. Para entender cada um e a dinâmica do relacionamento entre eles, é necessário assistir a tudo. Ver um episódio avulso e julgar posturas dos personagens é, no mínimo, injusto.
“Ele Está de Volta“, de Timur Vermes, foi acusado por críticos de humanizar Adolf Hitler. Ora, Hitler foi um humano. Um humano desprezível, mas ainda um humano. Se Vermes não o tornasse crível, estaria fazendo um trabalho ruim. Também lembro de ter lido em fóruns de literatura insatisfações dos leitores a respeito do antissemitismo da obra. Mais uma vez: Hitler foi tão antissemita que desenvolveu uma “linha de produção” para matar o máximo de judeus possível. Um livro em primeira pessoa, na perspectiva de ninguém menos que o próprio Hitler, não poderia tratar os judeus com respeito e empatia. Não faria sentido.
Assim é com o “Choque de Cultura”. Protagonizado por motoristas de van, é evidente que eles não reproduzirão discursos da “Quebrando o Tabu”. Obviamente, isso não é um salvo-conduto para destilar preconceitos “em nome da arte”, mas a esquete nunca fez isso: os “pilotos” são ignorantes no assunto que debatem, obtusos na forma como se expressam e incapazes de perceber isso. Diferente dos críticos “de verdade”, que maquiam suas abobrinhas com uma suposta autoridade no tema, “os maiores nomes do transporte alternativo” escancaram o absurdo de suas opiniões por não fazerem a menor ideia do que estão falando. O próprio programa os humilha.
Quando publicou “Zona Morta”, Stephen King foi “inundado de cartas, a maioria protestando contra minha inadmissível crueldade contra os animais” (outro trecho retirado de “Sobre A Escrita”). Ao construir um personagem verossímil, seu autor não está, necessariamente, defendendo o ponto de vista dele. Na verdade, ao colocar visões de mundo pontualmente machistas nas bocas de personagens tão incapazes, tais visões de mundo se tornam exatamente o que são: absurdas.
E isso é muito engraçado.