O cinema de Wes Anderson se relaciona muito diretamente com o gênero animação, na sua propensão à estilização e à construção de universos cartunescos, visualmente cada vez mais próximos de graciosas casas de bonecas. No entanto, “Ilha dos Cachorros” é apenas o segundo longa-metragem do diretor com criaturas e cenários exclusivamente animados. O primeiro, “O Fantástico Sr. Raposo” (2009), representou de fato um passo além na relação de Anderson com a imagem não realista em seus filmes – algo iniciado mais abertamente com o tubarão digital do epílogo de “A Vida Marinha com Steve Zissou” (2004) –, por permitir a ele coisas de difícil execução em live action: não só a presença de animais falantes e expressivos, mas mesmo um tipo de movimentação dos personagens na cena, posteriormente incorporado a “O Grande Hotel Budapeste” (2014).
Em “Ilha dos Cachorros”, o diretor exercita mais uma vez sua capacidade de contar histórias fofas, introduzindo pitadas de brutalidade que marcam uma continuidade temática com “O Grande Hotel Budapeste”. Enquanto esse último aproveita a jornada do concierge Gustave (Ralph Fiennes) e de seu assistente Zero (Tony Revolori) para tratar da decadência de valores oitocentistas diante da ascensão violenta do fascismo no início do século XX, “Ilha dos Cachorros” reconstitui, a partir da perseguição aos animais do título empreendida por um político (o prefeito da fictícia Megasaki, no Japão), o procedimento ao qual os nazistas submeteram judeus e outros grupos durante a Segunda Guerra Mundial: primeiramente acusados de disseminarem doenças (vale lembrar que, na propaganda nazista, os judeus eram associados a ratos transmissores de pragas), os cães japoneses são isolados da sociedade (numa ilha, equivalente aos guetos criados em cidades como as polonesas Varsóvia e Cracóvia) para, em seguida, se tornarem alvo de um projeto de extermínio.
Há, portanto, certo peso no filme, até porque seu contexto de lançamento força uma extrapolação dessa referência histórica inicial, aproximando-o dos debates sobre a infame política imigratória de Donald Trump. No entanto, Anderson não consegue levar a história muito além dos caminhos esperados de uma aventura canina que tem a amizade entre diferentes como tema central. Ainda que estejam presentes elementos típicos de sua filmografia, que tornam “Ilha dos Cachorros” uma animação perfeitamente integrada a ela (logo, diferente de congêneres realizadas por outros diretores): os travellings laterais e os enquadramentos centralizados, que reforçam a opção totalmente antirrealista e a impressão de um controle estético absoluto exercido pelo diretor, os diálogos rápidos, a trama recheada de acontecimentos que quase se atropelam, a empatia por personagens idiossincráticos e o elenco com muitos nomes conhecidos, integrantes de uma espécie de trupe (a principal novidade aqui é Bryan Cranston, ótimo como o protagonista Chief).
É a ambientação japonesa que dá ao filme uma cara própria no interior da obra de Anderson. Essa aproximação reverbera, é verdade, toda uma tradição ocidental de encanto pelo país do extremo oriente, muito presente, por exemplo, no chamado japonismo da arte do século XIX e no cinema de diretores da Nova Hollywood – apaixonados por Akira Kurosawa, George Lucas e Francis Ford Coppola produziram seu magnífico épico “Kagemusha – A Sombra do Samurai” (1980), sendo que Lucas já havia tomado como importante inspiração para “Guerra nas Estrelas” (1977) um filme de Kurosawa, “A Fortaleza Escondida” (1958); posteriormente, diretores como Paul Schrader, em “Mishima: Uma Vida em Quatro Tempos” (1985), e Martin Scorsese, em “Silêncio” (2016), também filmaram o Japão. No entanto, o maior êxito de “Ilha dos Cachorros” está em como Anderson estabelece um diálogo rico entre elementos da cultura japonesa, especialmente a pintura do século XIX (Ukiyo-e), e sua mise en scène característica. É como se ele encontrasse nessa arte um parente distante de sua forma de pensar e controlar a imagem. Trata-se, portanto, de uma leitura bastante particular do país.
Por fim, no que concerne às questões políticas postas no filme, elas são, claro, pertinentes e urgentes. “Ilha dos Cachorros” trafega bem por esse olhar sincrônico para passado e presente, entre Hitler e Trump, ainda que, no fim das contas, não escape totalmente de uma abordagem genérica do vilão, de seus planos e do embate dos heróis contra eles. Algo que, no entanto, resta menor diante do esmero estético de Anderson e da graciosidade derivada dele.