Crítica de “Comece do início”, primeiro episódio da segunda temporada de “Jessica Jones”. A crítica da temporada completa pode ser acessada aqui.
À exceção de “Punho de Ferro“, um dos piores originais Netflix já lançados, todo o universo expandido da gigante de streaming é atrativo, por diferentes razões. “Demolidor“ coloca em conflito as angústias do homem de carne e osso com os dogmas da sua religião. “Luke Cage“ aborda a noção territorial do super-herói numa estética blaxpoitation clássica, o que associa a defesa do Harlem não apenas aos vilões, mas ao próprio racismo da sociedade norte-americana. “O Justiceiro“, por sua vez, é uma versão narrativamente correta do “Sniper Americano“ de Clint Eastwood: o soldado de elite do exército que não é um herói quebrado, mas uma máquina de matar desprovida de controle ou propósito, cuja redenção está precisamente no abandono da antiga vida.
“Jessica Jones”, por sua vez, é a série de maior facilidade para a identificação com o público. Quando ela é interpretada como a vida de mulheres numa sociedade masculinizada, as intenções do roteiro ficam evidentes. Isso se aplica à trama em si, mas também à construção das personagens e como cada uma reage às situações a que são submetidas.
A escolha estilística de ambientar a série num clima “neo-noir”, de paleta escura e trilha sonora puxada para o jazz, já é em si uma subversão. Na História do Cinema, o film noir é um gênero protagonizado por homens. Jessica ocupa este papel de protagonismo nos mesmos moldes (ela também é uma detetive à margem da lei, vivendo um estilo de vida sórdido), mas sua construção não é a de “um homem de saia” (até porque a personagem de Krysten Ritter usa a mesma calça jeans surrada desde o começo da série). Tal ambiente cerca uma mulher, com problemas tipicamente femininos para resolver. No caso de Jones, traumas do passado que ainda a atormentam e são usados como arma de seus interlocutores para diminuí-la, responsabilizando a detetive por cometer atos de violência que, na verdade, foram sofridos por ela.
A resposta de Jessica, assimilada por Ritter em mais uma atuação brilhantemente inconstante, é a de “fechar portas”. Na concepção de mundo ideal inicialmente imaginada pela protagonista, o mínimo de envolvimento emocional com pessoas, principalmente clientes, aliado ao consumo máximo de uísque são a melhor forma de lidar com problemas que ela considera impossíveis de enfrentar. O que a tira do prumo é, precisamente, o disparo dos chamados “gatilhos” sobre sua alegada culpa nestes problemas. Alternando desinteresse absoluto com ira bíblica, Krysten Ritter mostra o quão desequilibrada Jessica Jones está.
Ao contrário de outras séries do gênero, em que mulheres servem como acessórios narrativos para os homens, as coadjuvantes de “Jessica Jones” mostram desde “Comece do início” um potencial para tramas paralelas com as quais o espectador vai se importar. Se Jones é a mulher vítima de múltiplos assédios que começa a temporada vilanizada por ter reagido a eles, Trish (Rachael Taylor) é a mulher em busca do sucesso e reconhecimento pelas próprias habilidades e sistematicamente oprimida pelo tom falsamente paternalista de seu patrão e do namorado, um lembrete ambulante de que ela nunca será tão boa quanto um homem.
Jeri Hogarth (Carrie-Anne Moss), por sua vez, é a representação da mulher que tenta vencer neste mundo masculino masculinizando sua persona. Agindo de forma impiedosa, reproduzindo discursos machistas e disposta a atacar outra mulher em posição menos favorecida, tenta reafirmar seu empoderamento negando que outras mulheres sejam empoderadas. É interessante notar como o status social de cada personagem varia de acordo com a forma como reagem ao mundo em que estão, mas nenhuma é plenamente livre. Todas têm, pelo menos, um momento em que são “enquadradas” por um homem.
“Comece do início”, ao contrário de outras série da parceria Netflix/Marvel, não oferece uma trama mirabolante para fisgar o espectador aos próximos 12 episódios da temporada. Sim, fica evidente que a descoberta de Trish sobre o passado de Jessica esconde uma conspiração maior. Mas não será a busca por respostas maiores, como o que aconteceu com “Ciclone” (Jay Klaitz), que tornarão a segunda temporada de “Jessica Jones” interessante. A série mostra, desde o primeiro episódio, que tratará de uma mulher – possivelmente mais de uma – encarando seu passado para vencer seus traumas e poder, enfim, seguir em frente.
Assista a todos os episódios de “Jessica Jones” clicando aqui.