É incrível atestar que a segunda temporada de “Luke Cage” – assim como tudo o que saiu da parceria Marvel/Netflix após “Os Defensores” – trilha caminhos muito mais maduros e complexos em comparação às temporadas de apresentação e estabelecimento destes personagens “urbanos” do MCU. Os superpoderes estão lá, como não poderiam deixar de estar. Mas estes 13 episódios tratam de temas muito mais profundos do que “mocinhos” contra “bandidos”.
Em primeiro lugar, porque é difícil definir os conceitos de Bem e Mal na série. Carl Lucas começa sua nova aventura tentando desbaratar os mafiosos responsáveis por colocar nas ruas uma droga chamada “Luke Cage”. É evidente que combater o tráfico de drogas é necessário, mas o que realmente incomoda Luke é ver o seu nome nos papelotes. É a ideia de ter alguém se apropriando de seu simbolismo para indicar a potência de uma droga que o lança à caçada.
Se essa poderia ser apenas uma leitura subjetiva, o roteiro faz questão de explicitá-la. Constantemente, Luke Cage é colocado em situações onde precisa escolher entre tomar decisões certas e alcançar resultados. E ele sempre vai pela segunda opção. Para ele, os fins estão justificando os meios. Paralelamente a isso, a própria população do Harlem vê em Cage um herói com obrigação de cuidar da vizinhança. E é aí que a série fica interessante.
A questão racial é o ponto mais alto em “Luke Cage”. Isso vinha desde a primeira temporada, com uma direção de arte preocupada em construir ambientes inspirados na blaxpoitation setentista. Agora, mais um passo foi dado. Não é mais adequado falar “cultura negra” para se referir à série: existe a cultura afro-americana do Harlem e a cultura jamaicana do Brooklyn, e as duas têm suas particularidades. Nas decorações, nas vestimentas, nos penteados nos sotaques e até na forma de lutar, o espectador nota que aquelas pessoas não são apenas “negras”. Dessa forma, seus anseios e suas abordagens para a solução de conflitos divergem. Às vezes, frontalmente. E é dessa divergência que surge o conflito necessário para tornar a série interessante e engajadora.
É possível dividir “Luke Cage” em três personagens principais: o protagonista (Mike Colter), a dona do clube Harlem’s Paradise Mariah (Alfre Woodard) e o novo antagonista Bushmaster (Mustafa Shakir). Bushmaster busca vingança contra Mariah por violências que a família dela cometeu contra a sua no passado, enquanto ela quer se consolidar como a verdadeira rainha do Harlem e limpar os malfeitos de seus antepassados da História. Luke quer a paz e está disposto a medidas drásticas para alcança-la. E aí está o grande questionamento da temporada: qual é a maior ameaça?
Há muito de “O Poderoso Chefão” em “Luke Cage”. Personagens (sim, é como se a série tivesse mais de um Michael Corleone) que se dizem melhores do que seus antepassados, que querem uma vida diferente, sendo tragados quase que à força para a lama de onde tentavam fugir, apenas para se descobrirem confortáveis ali. E a construção destes personagens torna difícil definir a quem “odiar”. Não há maniqueísmos. Quanto mais a história foca em cada personagem, mais os entendemos. Isso não justifica atos impróprios, como uma surra brutal que Luke dá em um bandido apenas porque estava aborrecido, mas nos coloca na mente de cada um, nos faz pensar como eles. Não aceitamos, mas entendemos.
Algumas decisões da série enfraquecem personagens menores, como a “solução” para o problema da deficiência da detetive Misty (Simone Missick) e toda a rivalidade entre ela e a detetive Nandi (Antonique Smith), a apagada Claire (Rosario Dawson) ou o pouco tempo de tela explorando a relação de Luke com o pai, o reverendo James Lucas (um dos últimos trabalhos do falecido Reg E. Cathey). Mas eles são, é preciso dizer, muito menores do que os acertos: cada relação entre personagens traz consequências mútuas. Há reciprocidade nos embates Luke x Bushmaster, Luke x Mariah e Bushmaster x Mariah, que se desenvolvem ao longo da temporada, mas também em trocas curtas, como o episódio em que Danny Rand (Finn Jones), o Punho de Ferro, aparece para “dar uma mão” a Luke numa missão e ambos saem dela sabendo mais sobre o outro e sobre si próprios.
Isso é algo que evoca a primeira temporada de “Demolidor”, quando Matt Murdock diz a um júri que “a diferença entre Bem e Mal varia de uma linha reta a um borrão e às vezes é como pornografia, nós só sabemos quando vemos”. O que torna “Luke Cage” especial é nenhum personagem realmente saber se o que está fazendo é certo ou não, apenas querer os resultados. Este é o primeiro passo para esquecer – ou descobrir – quem se é.
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