“O Processo”, documentário de Maria Ramos sobre o impeachment de Dilma Rousseff, ilustra ditados populares em quantidade industrial. O leitor que gosta de esportes, principalmente o futebol, está familiarizado ao primeiro deles: “deixa que a natureza marca”. Quando um adversário “perna-de-pau” tem a bola dominada, o bom senso diz ser a melhor forma para neutralizá-lo exatamente permitir que ele jogue à vontade. A falta de intimidade com a “redonda” o fará, naturalmente, errar um passe, chutar pra fora, tropeçar na bola etc. Já uma marcação próxima, dando ao “pereba” o tratamento de jogador habilidoso, pode ocasionar numa falta, a qual um adversário verdadeiramente qualificado pode converter em gol. Ou, por particularidades da mente humana, não ter tempo para pensar – e fazer algo inútil – pode forçar o “botinudo” a tomar a decisão certa por puro reflexo. Mesmo que depois nunca entenda como o fez.
O processo foi pautado por uma lógica de “faxina” na política brasileira, começando pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Quando a parte contrária à retirada de Rousseff do poder argumentava sobre a importância de respeitar a decisão das urnas, principalmente com menos de 50% do mandato transcorrido, evocava-se a necessidade primordial de defenestrar um partido corrupto e despreparado. Ramos, sem deixar dúvidas sobre sua visão pessoal a respeito do impeachment, “deixa a natureza marcar” seus principais fiadores.
Logo na primeira cena, estabelece um Brasil dividido, e é das falas dos deputados ao justificarem seus votos, tanto a favor quanto contra, passando pelas reações populares na área externa do Congresso Nacional, que ela começa a desconstruir a lógica da moralidade. Se os pró-impeachment falam em “salvar o Brasil da ditadura bolivariana”, como podem dedicar seus votos a torturadores e ditadores, como fizeram Jair Bolsonaro e seu filho Eduardo, com parte do povo ouvindo em êxtase?
Também é conhecida – citada recentemente pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes – a expressão “o rabo abanar o cachorro”. Ela indica uma quebra na ordem natural das coisas, com consequente inversão nas relações de causa e efeito. Para Maria Ramos, “o rabo abana o cachorro” quando políticos de moral questionável lideram um movimento cuja principal bandeira é a moralidade. Ela materializa sua crítica na figura de Eduardo Cunha, presidente da Câmara que viabilizou o impeachment e hoje está preso por recebimento de propina.
Sobre o estilo, Ramos faz um “documentário-documentário”. Não existem narrações ou entrevistas, tampouco a diretora aparece à frente das câmeras. Seu papel de observadora passiva dos acontecimentos só é minimamente suspenso com pequenas inserções textuais que dividem os “atos” do filme cronologicamente. Começa em 17 de abril de 2016, com a votação no Congresso já mencionada e termina em 31 de agosto do mesmo ano, quando o Senado sacramentou a deposição da presidenta. A própria Dilma tem um papel “coadjuvante” em tela, aparecendo majoritariamente, com apenas uma exceção, em contextos já divulgados pela imprensa à época do impeachment. “O Processo” tem três “protagonistas”: os senadores petistas Lindbergh Farias (Rio de Janeiro) e Gleisi Hoffmann (Paraná), além de José Eduardo Cardozo, então advogado-geral da União.
Nas reuniões petistas durante o transcorrer do impeachment no Senado, “O Processo” evoca outro ditado: “tem caroço nesse angu”. O clima nos bastidores, aquilo que o documentário traz de inédito sobre o caso, sempre é de resistência, mas consciente da inviabilidade de vitória. Um clima bizarro, pois como alguém entra num julgamento previamente condenado? A montagem de Karen Akerman intercala acontecimentos notórios, como a escolha do tucano Antonio Anastasia para a relatoria do processo, e os efeitos na célula petista, cada vez mais soturna nas reuniões.
Diferente de obras maniqueístas como “Polícia Federal“ ou ingênuas como “O Mecanismo“, “O Processo” não cria “heróis de vermelho”, lutando contra “vilões inomináveis”. Inclusive, o documentário tem o registro histórico de lideranças do PT fazendo, pela primeira vez, uma autocrítica a seus anos no poder: a inviabilidade de governar, mesmo se “um milagre” devolvesse Dilma ao cargo; o afastamento dos coletivos sociais; a aproximação à grande mídia. O Partido dos Trabalhadores, representado nos dois Senadores que mais atuaram para tentar impedir o impeachment, assume ter sido derrubado, em parte, por conta de seus próprios erros.
Em lugar de uma falsa imparcialidade (não existem discursos imparciais, apenas pessoas cínicas o suficiente para se dizerem imparciais), “O Processo” deixa claro desde o princípio que considera o impeachment uma manobra para implementar uma agenda neoliberal no Brasil e expõe as contradições da oposição. Enquanto Cardozo baseia a defesa do governo em aspectos técnicos da denúncia, a já folclórica Janaína Paschoal fala de bailarinas perdidas, ergue a Constituição como a Bíblia e chora pelo sofrimento que causou a Dilma, para em seguida abraçar afetuosamente Aécio Neves, presidente do PSDB que pagou 45 mil reais a Janaína para coescrever, com Hélio Bicudo e Miguel Reale Júnior, e protocolar o pedido de impeachment. Uma mera “formalidade” para o Poder Legislativo conduzir uma eleição indireta e substituir Rousseff por Michel Temer.
Como diz mais um ditado, “quem com porcos se mistura, farelos come”: enquanto políticos pouco dados à liturgia de seus cargos mandam instalar campainhas que toquem mais alto para conter seus pares, incapazes de respeitar a fala alheia, os manifestantes que os apoiam, trajando camisas da Seleção Brasileira, dançam uma micareta macabra em celebração a algo que claramente é mais do que se diz ser. “O Processo” ilustra, com o primeiro e o último quadro, a passagem do brasil da luz da democracia para as trevas de um golpe, orquestrada por maníacos e apoiada por desvairados.
É do que Shakespeare se lamenta em “Rei Lear”: “desgraçado do tempo em que os loucos guiam os cegos”.