Roma

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Alfonso Cuarón utiliza o poder da ficção para chegar ao mito fundador do México

Matheus Fiore - 16 de dezembro de 2018

Krzysztof Kieslowski teve uma vasta carteira como documentarista antes de alcançar o sucesso com obras como as da trilogia das cores. O cineasta polonês, como muitos, tentava retratar a verdade ao jogá-la nua e crua no cinema, capturando a rotina. Isso rendeu obras interessantes, como o brilhante curta “Cabeças Que Falam”, de 1980, mas só quando mergulhou na ficção foi que o cineasta conseguiu produzir suas grandes obras. Kieslowski, claro, já fazia ficção nos anos 70, mas foi no meio dos anos 80 que o polonês se desconectou completamente da fase documental. O cinema é, por essência, a máscara, a persona que nos permite extrair alguma verdade, como Bergman realizou em seu brilhante “Persona”, de 1966, e absorver essa ideia fez parte da evolução de Kieslowski como cineasta.

Alfonso Cuarón sempre apresentou, em seu cinema, um interesse por investigar os contextos em que seus personagens estão inseridos. Isso é visível principalmente em três filmes: “E Sua Mãe Também”, de 2001, “Filhos da Esperança”, de 2007 e agora em “Roma”, de 2018. Há, porém, claras diferenças entre as obras. Os três filmes trabalham a relação entre a parte frontal do plano e o fundo para falar sobre alienação e questões sociopolíticas. No filme de 2001, o fundo só chega à frente do plano quando o próprio Cuaron muda a direção de sua câmera para filmar o que acontece nos espaços ignorados pelos personagens. “E Sua Mãe Também” é, mesmo que um longa ficcional, o filme de Cuarón com mais características de documentário, algo evidenciado pelo voz over que comenta os acontecimentos.

“No puedo, estoy muerta”

Já em “Filhos da Esperança”, Cuarón nos obriga a prestar atenção ao que acontece no fundo, fazendo com que esta parte do quadro redefina a frente do plano. São os elementos inicialmente relegados ao fundo que nos ajudam a compreender o cosmo da obra, e também são eles que movem e significam a trajetória de Theo, o protagonista vivido por Clive Owen. Há uma clara diferença entre as abordagens de “E Sua Mãe Também” e “Filhos da Esperança”. O segundo assume abertamente mais o poder da ficção. Abraça as oportunidades criadas pela abstração da realidade, e com isso consegue falar sobre o mundo de hoje como pouquíssimos filmes fizeram no século XXI.

Chegamos, então, a “Roma”, novo filme de Cuarón. O mexicano, que coletou dois Oscars por seu longa anterior, “Gravidade”, volta ao México dos anos 70 para revisitar sua infância sob um escopo diferente: o da empregada de sua família, Libo (no filme, Cleo). Para fazer tal digressão, “Roma” assume-se como uma memória, um registro do passado. A fotografia em preto e branco escancara a ficcionalidade da narrativa, bem como a distopia fez em “Filhos da Esperança”. É como se folheássemos um álbum de fotos da família do cineasta. Partindo dessa ideia, porém, o diretor consegue falar sobre conflitos de classes e, de quebra, tecer alguns comentários sobre sexismo e política.

Muitos críticos acreditam que a não problematização da relação abusiva patroa-empregada é uma forma de não criticar um vínculo empregatício elitizado e desumanizador. Respeitosamente discordo. Acredito que Cuaron utiliza o avião tanto no primeiro quanto no último plano justamente para mostrar como Cléo é, sim, uma prisioneira do sistema, praticamente uma escrava. Ao longo do filme, a vida de praticamente todos os personagens sofre algum tipo de mudança. A patroa se divorcia, compra um novo carro, arruma um novo emprego. As crianças brincam, brigam e crescem. Mas Cléo parece estar presa a um ciclo. Todos os seus esforços para realizar algo além do trabalho acabam com um fim trágico e, em alguns casos, até em morte. A protagonista, então, é refém de seu contexto social. Por mais que Cuarón mude o ponto de vista do primeiro para o último plano, em ambos a personagem faz a única coisa que seus patrões querem que ela faça: trabalhar.

Cuarón opta por assumir uma postura passiva diante dos acontecimentos, mas não por concordar ou vê-los como algo belo ou ético, e sim por estar apenas revisitando eventos de sua memória que estão fechados, concluídos. Com seu filme, o cineasta mexicano busca regressar à infância e apontar uma câmera para esse passado unicamente para compartilhá-lo e compreender melhor como era o cenário que formou uma geração de pessoas de sua classe social. A crítica está lá, no subtexto, em cenas que colocam em contraste a riqueza e a pobreza, a abundância de amor de uns e a solidão de outros, bem como conseguem também ressaltar que, em um sistema hierárquico tão definido, o afeto entre pessoas de classes diferentes pode até existir, mas sempre será acompanhado por uma subjugação. Cleo pode sentar-se para ver televisão com seus patrões, mas, a qualquer momento, uma ordem a fará ir à cozinha para preparar o lanche das crianças. A mulher pode viajar com sua patroa e os filhos, mas servirá como “cuidadora” da família. Estará em pé, trabalhando, enquanto os demais estarão sentados, relaxando.

Há também uma gigantesca separação social entre as figuras familiares, que se faz presente de diversas formas. Há diferentes níveis de subjugação em “Roma”. Observamos, por exemplo, que as panorâmicas que passeiam pela casa onde Cleo trabalha destacam sempre a estante de livros localizada na sala, como se o restante do ambiente girasse ao redor dela. A estante é justamente a representação do chefe da família, do patriarca. Não por acaso, a cena em que conhecemos o homem, toda a família se curva à sua espera, na porta da casa. Se o homem oprime sua esposa, essa acaba se tornando a figura opressora da empregada.

Nesse México descolorado de “Roma”, há vários elementos que parecem sugerir uma análise da fundação da sociedade mexicana – algo que o cineasta já trabalhou com maestria em “E Sua Mãe Também”, diga-se de passagem –, como a cultura armamentista. É interessante ver as diferentes posições dos objetos em diferentes contextos: se, para a classe burguesa presente na cena do Revellión, uma arma é um utensílio comum, usado para o divertimento, para personagens de grupos marginalizados, é quase uma ferramenta de emancipação – vide a cena do massacre de Corpus Christi.

Vida e morte também são uma constante ao longo da projeção, e parecem andar lado a lado – como o terremoto que acompanha uma visita de Cleo a uma maternidade ou, melhor ainda, a cena seguinte, que traz três cruzes fincadas em um campo. É como se, naquele mundo tão problemático, elementos que se anulam pudessem coexistir. Não só vida e morte, mas também o tempo é um fator maleável em “Roma”: uma das crianças da família vive falando que quando “era” mais velho, era um marinheiro que enfrentava tormentas, como se Cuarón brincasse com o fato de que, por estar revisitando o passado e trazendo-o para o presente, não houvesse mais uma separação cronológica das coisas. A sociedade retratada em Roma pouco difere da atual, de forma que a figura da empregada poderia facilmente ser substituída por uma escrava se simplesmente se transportasse a história para alguns séculos anteriores.

“Roma”, então, não problematiza as relações de seus personagens porque Cuarón está mais interessado em compreender aquela sociedade. Muitos colegas críticos fizeram análises que traçam paralelos entre “Roma” e o fantástico “Que Horas Ela Volta”, falando sobre a consciência de classe que parece faltar no longa de Cuarón. Apesar de compreender as críticas, acredito que, se falamos de obras brasileiras contemporâneas, “Roma” tem mais em comum com o rejeitado “Vazante”, de Daniela Thomas, filme que mesmo que não discuta as diferenças raciais do período escravagista do Brasil de forma satisfatória, faz uma interessante análise de como o ódio e a subjugação são, infelizmente, parte da formação do povo brasileiro.

Cuarón, porém, é bem mais preciso em seu estudo. O cineasta vai ao próprio passado para prestar uma homenagem, mas também para retratar uma relação opressora que fez parte da fundação de seu país. Assim como Kieslowski, Cuarón compreende que o cinema, como boa arte, é a persona que nos permite melhor compreender o mundo. É a máscara que nos permite ver e falar o mais próximo de uma verdade que seja possível. Para Cuarón, a ficcionalização da realidade é a ponte para melhor visualizar e retratar a problemática estrutura social do país onde nasceu. Não há ascensão social, a empatia vai até a página dois. Ao fim do dia, por melhor que sejam os esforços de Cleo para agradar seus patrões, ela continuará tendo a mesma “função” social de antes. Porque a ascensão é impossível, a hierarquia está definida e, para pessoas como Cleo, a revolução nunca poderá partir de dentro do sistema.

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