Em quatro anos de investigações, o diretor Travis Wilkerson percorreu o Sul dos Estados Unidos em busca de informações sobre Bill Spann. Negro e habitante do ultraconservador e racista Estado do Alabama, Spann fora assassinado a tiros, em circunstâncias contraditórias, pelo bisavô do cineasta, o qual não enfrentou julgamento na década de 40. Nenhuma das informações reunidas pelo realizador a respeito da vítima dizia algo sobre sua vida; nenhuma foto, nenhum conhecido, nenhuma história: uma vida inteira reduzida ao seu revoltante fim, a um assassinato, a um crime de ódio.
A questão “Você Já Se Perguntou Quem Atirou?”, que dá nome ao filme, não tende a incitar mistério ou dúvidas sobre o fato. O interesse de Wilkerson, na verdade, é de compor um retrato sobre o racismo e ódio enraizados na sociedade norte-americana – e, em especial, seus reflexos nos últimos setenta anos. Desde o início somos advertidos pelo diretor, também narrador em voice-over por toda extensão do longa, sobre o pessimismo (e pragmatismo) em torno do caso e seus desdobramentos. “Acredite, esta não é mais uma história sobre um branco salvador. Isto é um pesadelo branco”, anuncia o cineasta ao contrapôr sua história com “O Sol é Para Todos” (1962), de Robert Mulligan.
Wilkerson dá forma à sua discussão por meio de duas frentes narrativas a partir do crime: a procura por fragmentos da vida de Spann e a relação de Branch com a comunidade. A ausência de fatos sobre o primeiro é tão perturbadora quanto as recordações acerca do segundo. Envolto em estupros e outros assassinatos, como descobertos no terceiro ato da história, Branch é descrito como o estereótipo máximo do sulista conservador, o que leva a outro ponto central de “Você Já Se Perguntou Quem Atirou?”: a penitência imposta por Wilkerson a si e a todas as pessoas brancas.
O discurso expiatório é bem localizado dentro do contexto do filme, sendo o diretor descendente direto do assassino e do ódio branco. “Brancura incendeia famílias”, diz, referindo-se ambiguamente ao seu próprio seio familiar – além dos crimes cometidos por S.E. Branch, uma das tias de Wilkerson virou integrante de um grupo de supremacistas brancos – como ao da vítima. A potência atribuída à sua aproximação com o ocorrido constrói-se por meio de afiados apontamentos às relações captadas pela câmera e detrás dessa, como a constatação de estar “gravando por dinheiro uma lápide sem nome, onde um homem negro está enterrado”.
A provocação se extenua, entretanto, pelo acuamento do diretor ante à própria história. É desmedido o limite entre autoindulgência e responsabilidade, direta ou indiretamente ligada ao crime em si. O confrontamento com a tia supremacista, por exemplo, nunca ocorre senão pelo acanhado relato de uma carta – assim como a (curta) entrevista com o militante negro Edward Vaughn, que somente endossa o quadro geral posto pelo próprio diretor, sem afilar-se a ações individuais. A passividade de Wilkerson por vezes resvala na pretensiosidade de suas acusações e afastamentos, como ao manifestar-se pela omissão a um canal supremacista para “não dar plataforma” a esse tipo de discurso.
Ambientando o filme em meio a pequenas cidades sulistas, a apreensão dos aparentemente pacíficos e serenos locais revela, visualmente, o enraizamento da violência e ódio velado em que tais comunidades vivem. O preto e branco desloca os acontecimentos e vias percorridas, sem estabelecer períodos específicos para tais – o oposto disso. Mais determinante que as pessoas, talvez sejam as próprias terras que demarcam e atravessam com virulência geração após geração.
Sem apelos a sensos de urgência, como já estabelecido pela “revelação” do assassino desde seu início, “Você Já Se Perguntou Quem Atirou?” percorre curtos mas significativos passos, entrelaçando suas histórias a fim de concluir sua real proposta: não o desvendar dos motivos materiais por trás do assassinato, mas o resgate da vida (mesmo que através da morte) de um injustiçado. Como à contrassenso de “O Sol é Para Todos”, esta não é mais uma história sobre heróis brancos, movidos por ideais; mas, sim, a comprovação da necessidade de tornar o negro como protagonista de sua própria história.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival Olhar de Cinema de 2018.
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