Talvez os momentos mais peculiares de escrever críticas de cinema sejam quando encontramos um filme cheio de boas ideias, com as quais criamos enorme identificação (seja ideológica, filosófica, política, ou qualquer outra) mas, ao analisar a construção técnica e narrativa de tal obra, sejamos incapazes de ver bons valores técnicos. No meu caso, O Círculo é o exemplo perfeito disso. Em uma época em que boa parte da sociedade parece ter esquecido que a intenção das grandes corporações é lucrar e administrar seu poder, não salvar o mundo ou “lacrar”, é interessante (e até importante) vermos filmes que satirizem a idolatria às empresas e a forma como nos manipulam. Infelizmente, O Círculo parece ter sido escrito por um adolescente de 15 anos que leu um resumo de 1984, assistiu à alguns episódios de Black Mirror e decidiu fazer uma fanfic misturando os dois.
A obra acompanha Mae Holland (Emma Watson), uma jovem que consegue um emprego na Circle, a maior empresa de tecnologia do mundo (oi, Google). Inicialmente, tudo é maravilhoso. A Circle faz questão de ajudar no tratamento da doença do pai de Mae, provém um belo plano de saúde, um bom salário para a moça e, de quebra, parece ter em sua sede um ambiente familiar acolhedor. A situação começa a ficar estranha quando Mae percebe que, por trás de todo o carinho oferecido por seus chefes e pela empresa onde trabalha, há a intenção de controlar e monitorar toda a população.
A premissa é até bem interessante, mas o roteiro nunca desenvolve suas críticas, seus personagens e muito menos as situações apresentadas. O Círculo se resume a mostrar, de trocentas formas diferentes, como a privacidade é importante e as empresas tecnológicas são más e querem capitalizar nossas informações pessoais. Entre as quinhentas formas de mostrar a mesma coisa, o filme insere “TED talks” de Mae e Eamon (Tom Hanks, co-fundador da Circle) discutindo como a falta de privacidade vai tornar o mundo mais seguro. O problema é, como dito, a incansável repetição da mesma ideia. Ao invés de desenvolver a questão da privacidade, das intenções nefastas das empresas, o texto foca apenas em mostrar as várias formas de controle exercidas pela Circle e suas consequências na vida da protagonista.
A direção do filme não alivia a experiência. James Ponsoldt não tem sutileza alguma ao construir sua narrativa e, ao mesmo tempo que dá um tom satírico estilo Black Mirror, não consegue se desprender do realismo chato e que torna o filme incoerente. Suas escolhas de planos são interessantes mas, assim como o roteiro, repetitivas. Utilizar uma câmera móvel que flutua por cima da personagem, representando a vigilância em torno da protagonista, é até interessante, mas repetir isso dezenas de vezes e em takes que duram menos de dois segundos acaba se tornando um exagero que em nada acrescenta. Alguns detalhes sutis, por outro lado, são bacanas. Há uma cena, por exemplo, na qual a protagonista está sendo “manipulada” e tem um chip inserido em seu corpo. Para ativa-lo, ela precisa se movimentar, e Mae escolhe andar em círculos no ambiente, o que acaba sendo uma forma interessante de mostrar como ela está imersa na filosofia controladora da Circle.
O mais triste de O Círculo é constatar que o filme traz sua melhor ideia justamente quando ele perde totalmente a sutileza e torna-se uma caricatura de suas próprias ideias. Conforme acompanhamos as palestras e reuniões de Eamon, percebemos como ele é simplesmente uma marionete de Tom Stanton, CEO da empresa que atua “por trás das cortinas”. O bilionário engravatado pouco fala, mas está sempre por trás de todas as decisões importantes. Há, inclusive, belos momentos em que vemos Eamon palestrando ou dialogando com outros personagens e, no fundo e desfocado, está lá Tom, como se puxasse as cordas do personagem de Tom Hanks. O que acontece e empobrece o filme paralelamente a isso é que a Circle passa a apresentar ideias cada vez mais “revolucionárias” e controladoras, mas as anteriores nunca são exploradas, apenas mencionadas. Além disso, a protagonista simplesmente deixa de pensar, e torna-se um desinteressante peão no jogo da corporação.
Não ajuda o filme o elenco de apoio, liderado pelos bons John Boyega e Karen Gillan, que são os amigos de trabalho da protagonista que, infelizmente, só aparecem quando o filme precisa nos contar algo de importante, não tendo desenvolvimento nenhum. O terceiro coadjuvante, Mercer (Ellar Coltrane) é o que tinha mais potencial, por ser o mais forte elo de Mae com o mundo externo à empresa, mas, assim como os outros dois, nunca é desenvolvido e só surge como ferramenta do roteiro. Tom Hanks pouco tem para fazer, mas acaba sendo um alívio cômico interessante em momentos específicos. A única que merece destaque mesmo é Emma Watson, que se esforça mais do que seu filme merece e consegue nos fazer torcer por uma protagonista descerebrada graças ao seu lado emocional (presente principalmente na relação com os pais).
Outro grave problema do filme é a falta de impacto nos acontecimentos da vida dos personagens. Há uma cena na qual alguns personagens tem sua privacidade violada e não há sequer um diálogo relevante acerca do ocorrido. E Mae também não demonstra ser abalada por tais acontecimentos, mesmo que Emma Watson se esforce para construir preocupação, medo e dor, o texto que a guia não traz nada além de poucos segundos de receio até que ela volte a, novamente, ser uma marionete de seus patrões. O engraçado é perceber que, no meio de tantas obviedades, algumas sutilezas ainda enriquecem o filme, como quando um movimento de câmera tira do plano um objeto de um personagem que deixa de estar no filme. Em momentos como esse, fica claro que se O Círculo administrasse melhor a sutileza, poderia ter uma narrativa muito mais consistente.
Numa época em que qualquer filme que teça algum comentário social seja “muito Black Mirror”, essa obra acaba sendo o melhor retrato dessa frase, levantando questões importantes sob uma roupagem simplória, óbvia e infantil demais. Assim como um adolescente que lê sobre o mito da caverna na wikipédia, acredita transformar-se num doutor em filosofia e passa a endeusar Platão, O Círculo aborda temas sociais e políticos importantes sem lembrar que, mais do que introduzir, desenvolver tais temas é essencial. Cheio de boas intenções, é um filme que não tem o que dizer a não ser seu discurso batido e repetitivo sobre vigilância e privacidade. É pouco.