Nestes tempos em que idiotas esbravejam “isso não é arte!” e “isso é que é arte!”, O Mundo de Andy parece mais do que atual. É necessário dizer, claramente, que tudo é arte. E nada o é. Porque arte – aquela que não se vende, apenas existe – não vem para agradar a ninguém, nem mesmo ao público. Ela pode passar dos limites e ser rejeitada, mas nunca censurada. Um artista incompetente cai no esquecimento, mas tolher sua liberdade de criação é como uma morte em vida.
Ao começo da obra, um monólogo de Andy Kaufman (brilhantemente interpretado por Jim Carrey) fala explicitamente para que o público vá embora do cinema, pois “o filme é uma porcaria”. Tal recurso é batido, quando trivial em comédias. Mas o que o torna diferente do lugar-comum é a convicção do protagonista em manter a encenação. Quando os créditos finais do filme são exibidos na totalidade e a tela escurece por 15 segundos, quase acreditamos que o filme, de fato, terminou. Esse comprometimento com a proposta, testando os limites da audiência, é precisamente a essência de Kaufman enquanto artista. O Mundo de Andy não poderia ter um começo mais apropriado, portanto, exatamente por testar os limites do espectador pra ver se ele realmente vai acreditar que o filme acabou antes mesmo de começar.
O diretor Miloš Forman (criador de obras-primas como Amadeus, O Povo contra Larry Flint e Um Estranho no Ninho) cria uma das elipses temporais mais orgânicas do Cinema pós-Kubrick ao unir a infância e a vida adulta de Andy na canção “Oh, The Cow Goes Moo”. Numa decisão de corte e montagem, o checo implica em duas características marcantes da personalidade do protagonista ao longo de todo o filme: a convicção de Kaufman na qualidade do seu trabalho e a preservação da sua pureza infantil enquanto artista. E é exatamente aí que a atuação de Jim Carrey se mostra fundamental para a coesão do filme. Imitar à perfeição os trejeitos de Kaufman é interessante, mas seria um mero exibicionismo se não levasse a uma camada extra de significado na obra.
Kaufman está sempre de olhos arregalados, com os ombros duros, costas ligeiramente arqueadas, esfregando lenços de papel nas mãos após cumprimentar alguém. Isso indica um estado de inquietude e inadequação do artista para o trato com os outros. Quando repreendido por alguém, exibe uma postura infantilizada. O uso destes “tiques” por parte de Carrey reforçam a inquietude de Kaufman, um artista incapaz de fazer o que lhe era mandado. Tal incapacidade de se submeter ao moedor de carne da Indústria Cultural chega ao ponto de Kaufman, em uma apresentação na qual a plateia exigia que ele interpretasse Latka, seu personagem mais popular no programa de TV Taxi, decidir ler O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, na íntegra.
Tal evento – que não foi uma licença poética de Forman, realmente aconteceu – foi motivado pela vontade de Kaufman de irritar a audiência, mas não apenas por isso. Quando ele diz que vai oferecer “boa arte” e lê “a maior contribuição de Fitzgerald para a Literatura”, escolhe exatamente um livro sobre a dificuldade humana de abandonar o passado e olhar para frente. Aqueles que compraram ingresso e se sentiam no direito de pautar o roteiro do show não queriam ser questionados pelo novo. Apenas uma reprodução do familiar lhes bastaria.
Mesmo os trechos do livro escolhidos para ilustrar o momento no filme são de um preciosismo admirável: a abertura, por falar sobre o risco de julgar alguém pelos próprios valores morais e não entender seus objetivos, precisamente por não entender o que o motiva, e o final, por realçar a dor inevitável de quem busca um objetivo que, a cada dia, fica mais longe. Latka é o passado do qual Kaufman foge enquanto seu público o persegue.
O Mundo de Andy fala de um artista, na acepção do termo. Alguém que não está disposto a fazer concessões para se tornar palatável, que não quer causar conformismo e relaxamento. Exatamente o oposto disso: quer que o público se indigne com ele, se isso for o necessário para causar reflexão. Alguém que fez da curta vida uma obra de arte, sacrificando a própria identidade em nome da autenticidade dos personagens que criava. Que, a exemplo de Lassie (a música dos créditos “finais” é a mesma do seriado), que só queria voltar para casa, não mediu esforços para alcançar seu objetivo.
E, até o corte final, Forman demonstra respeito e reverência pelo protagonista de seu filme, deixando em aberto a possibilidade da última grande aventura de Andy ter sido uma obra de arte e que ele continue vivo. Algo que realmente não importa, pois Kaufman não precisa de um corpo físico para viver. Sua arte é a sua vida eterna.