A natureza trágica intrínseca à todas as tramas de Black Mirror sempre foi um elemento fascinante. O inexorável fracasso dos personagens ou as grandes reviravoltas que transformam vítimas em monstros é um dos elementos mais impactantes ao longo da série. Em Crocodilo, terceiro episódio da quarta temporada, a série volta a apostar nessa estrutura, utilizando a investigação de um crime como pano de fundo para contar uma história sobre nossas memórias e seu peso. No episódio, um casal de jovens, Mia e Rob, sai de uma balada. Completamente entorpecidos, os dois não percebem a presença de um ciclista na pista, e acabam o atropelando. Temerosos diante das possíveis consequências do crime, eles decidem esconder o corpo, a bicicleta e seguir com suas vidas.
O crime persegue Mia e Rob por quinze anos, até que, em certo ponto, Mia se vê em uma espiral de crimes para ocultar seu passado. Paralelamente às vidas de Mia e Rob, Shazza, uma funcionária de uma agência de seguros, investiga um acidente entrevistando as pessoas que o testemunharam. Shazza utiliza uma máquina que projeta em tela as memórias das pessoas, o que a leva a interrogar Mia, que estava presente no local do acidente.
Crocodilo é um episódio um tanto quanto diferente dos outros da série. Muito de sua força está na imagem, algo que é bom, mas incomum em Black Mirror, que sempre apostou no roteiro. Mia, por exemplo, em momento nenhum precisa dizer que é atormentada por seus crimes, vemos ela sentir-se exposta e fragilizada muito pelo uso de planos abertos, que ressaltam sua pequenez diante dos cenários, e também pela ótima atuação de Andrea Riseborough, que nunca passa tranquilidade, criando uma psique eternamente assombrada.
Também é importante a repetição de alguns elementos. Quando Mia comete um novo crime, no futuro, e vai até a neve vomitar, ela está repetindo o que fez no primeiro momento do episódio, quando foi cúmplice do ocultamento do cadáver do ciclista. Crocodilo, então, torna-se um estudo do peso das memórias dos personagens. Memórias essas que entrepassam qualquer pensamento sadio da personagem. Vemos, por exemplo, quando ela é entrevistada por Shazza, que sua tentativa de ocultar as memórias de seu último crime são totalmente fracassadas: as imagens da morte de Rob preenchem a tela em segundos, pois suas lembranças são mais fortes que ela.
O nome do episódio, Crocodilo, traz inúmeras possibilidades de interpretação. No estudo dos sonhos, o animal está relacionado ao anúncio de mudanças na vida ou até perigo, justamente duas coisas que permeiam a vida de Mia. Mas também podemos interpretar como uma referência à droga Krokodil, que deteriora o corpo de quem a consome – metaforicamente, os crimes de Mia também deterioram sua mente, tanto do ponto de vista de sua saúde mental, quanto moralmente.
Crocodilo ainda tem a função de amarrar algumas teorias antigas dos fãs da série. A ideia de que todos os episódios se passam em um mesmo universo é antiga, e aqui deixa de ser simples referência e torna-se realidade. No episódio de Natal, vemos o programa de calouros Hot Shot (oriundo do episódio das bicicletas, Fifteen Million Merits) passando de relance em uma televisão. Aqui, a canção Anyone é cantarolada diversas vezes, além de um funcionário do hotel onde Mia esteve hospedada dizer que por lá passou um dos jurados do programa Hot Shot.
Esta amarração é interessante por nos possibilitar imaginar diversos desdobramentos para o episódio. Poderia Mia, por seus crimes, terminar presa em um sistema carcerário semelhante ao do episódio White Bear? Outra dúvida que fica é: onde se localiza a cidade dos “ciclistas” do episódio Fifteen Million Merits? Seria uma alegoria para o terceiro mundo e a escravização de povos pobres? A possibilidade de vermos Mia novamente em uma futura temporada não deixa de ser interessante, e poderia abrir espaço para um novo formato para a série.
Mas, voltando ao que interessa aqui, que é Crocodilo, é justo também enaltecer a forma como o episódio é concluído: Quando Mia está com seu marido, na escola do filho, diante de uma apresentação infantil, mesmo ainda sem ciência de que a polícia a descobriu, ela demonstra uma feição extremamente triste, o que evidencia como suas memórias e crimes se acumulam como bolas de neve e assolam sua mente.
Ao fim da projeção, pouco importa se a polícia vai ou não prender Mia (e, inevitavelmente, vai, mesmo que o capítulo não nos mostre). A verdadeira prisão na qual a personagem está é a sua mente, levada por seu próprio julgamento. Tentando limpar seu passado, Mia acabou transformando-se no monstro que via em Rob. A culpa a consome, e, inocentada ou não, ela sabe que seu passado a assombrará. A grande dor de Crocodile não está somente nas imagens ou nos diálogos, mas no que sabemos que ocupa a mente da protagonista e a move, mesmo que não possamos ver. Seu choro nunca advém do lamento pelos crimes que está prestes a cometer, mas pela consciência de que, como os do passado, estes estarão sempre na sua memória.