Jessica Jones – 2ª temporada

Jessica Jones – 2ª temporada

Gustavo Pereira - 12 de março de 2018

Para a crítica do primeiro episódio da segunda temporada de “Jessica Jones”, “Comece do início”, clique aqui.

Jessica Jones segunda temporada

Alisa, principal novidade da temporada, está diretamente ligada ao passado de Jessica Jones (mas não de uma forma cafona, como costumam fazer)

As referências de “Jessica Jones” ao gênero de film noir vão além da paleta escura e da trilha, já mencionadas na crítica do episódio-piloto. Estão também nas narrações de Jessica – Krysten Ritter, outra vez incrível – por cima de acontecimentos marcantes da temporada (algo presente, por exemplo, em Pacto de Sangue e na versão cinematográfica de Blade Runner). Nas linhas borradas que separam o lícito do ilícito. Na condição miserável em que os protagonistas se encontram. E, principalmente, numa referência explícita, porém sutil, à Marca da Maldade.

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Jessica e Trish assistindo ao icônico plano-sequência de abertura do filme “A Marca da Maldade”, de Orson Welles.

No filme de Orson Welles (assistido por Jessica e Trish na cena final do episódio “Loucura, loucura”), um policial mexicano honesto precisa investigar um assassinato ocorrido na fronteira do seu país com os Estados Unidos, enquanto é atrapalhado, sabotado e incriminado por dois policiais americanos corruptos. Mas o grande inimigo do policial Mike Vargas (Charlton Heston) acaba por ser o preconceito que recai sobre ele por ser mexicano.

Jessica, uma pessoa psicologicamente quebrada por múltiplos traumas, abusos e perdas em seu passado, é essencialmente boa. O que torna tudo mais difícil para ela é o isolamento e o preconceito vindos de duas condições que ela não controla: ser uma mulher e ter superpoderes. Há dois momentos em que Homem-Aranha (Sam Raimi, 2002) é evocado para fazer piada com o icônico conselho de Tio Ben. Espera-se de Jones que ela abrace sua condição privilegiada para fazer o bem. Mas ser uma heroína só piora a vida da protagonista. Diferente de Peter Parker, ela não deseja este destino. Boa parte da dinâmica da segunda temporada de “Jessica Jones” se dá pelas insistências do destino em cobrar da protagonista aquilo que ela mais procura evitar: conexões com outras pessoas.

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Em um episódio-flashback do nível de “Sombras com reflexo” (primeira temporada de “Demolidor”), entendemos como não apenas Jessica, mas qualquer um é moldado pelas experiências vividas ao longo do tempo. Uma referência ao conceito da tábula rasa.

Estas “outras pessoas” são o segredo para o sucesso da segunda temporada de “Jessica Jones”: à exceção de Pryce Cheng (Terry Chen), nenhum personagem é raso ou desinteressante. Conforme a temporada avança, junto à história principal, subtramas surgem naturalmente dos apelos de cada um deles. Destacam-se, além de Trish (Rachael Taylor), Jeri Hogarth (Carrie-Anne Moss) e Malcolm (Eka Darville). E o grande mérito do roteiro é aproximar personagens de realidades tão diferentes por problemas comuns, de forma que “Jessica Jones” monta um painel sobre temas amplos.

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Malcolm busca ao longo dos episódios descobrir quem realmente é, após retomar a sobriedade no fim da primeira temporada.

As três mulheres são obrigadas a colocar as vidas em perspectiva diante dos desafios que lhes são impostos. Enquanto Jessica se anestesia dos problemas (a detetive bebe como nunca nesta temporada) para suportar o fardo que carrega, Trish trabalha ativamente para reconstruir o próprio destino, mesmo que isso a leve numa rota de destruição da vida atual. Hogarth, a advogada implacável que permeia todas essas séries da Marvel/Netflix, reage da única forma que sabe, buscando o controle absoluto e manipulando todos à sua volta para conseguir o que quer.

É sempre interessante notar como a série trata, quase esquematicamente, a maneira de cada uma lidar com temas como sexo, família e tempo. Exatamente por isso, não perde fôlego nos episódios centrais, algo corriqueiro nas produções recentes da Netflix. De forma coerente, a edição de “Jessica Jones” foca em unir as cenas como se fossem partes de uma cena maior (um personagem olha para uma direção e o próximo plano aponta para a mesma direção, mas este já faz parte de outra cena; personagens estão numa situação que indica tensão sexual e o próximo quadro mostra outros personagens transando etc.). Ao mesmo tempo que nos mantém informados sobre o que cada um está fazendo de formas inesperadas, conduz o suspense para o que não deseja revelar imediatamente.

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Trish considera os poderes de Jessica uma bênção pois, com eles, poderia evitar os abusos cometidos contra ela e contra outras pessoas em igual situação de vulnerabilidade.

“Jessica Jones” trata de questões maiores à própria trama, que envolvem as noções de trauma e culpa impostas a mulheres em uma sociedade falocêntrica. A falta de apoio retratada em cada uma das mulheres da trama (e a enfermeira Inez, interpretada por Leah Gibson, não deve ser excluída desta análise, apesar do pouco tempo de tela) se prova, sob um olhar mais atento, grande responsável por moldar personalidades duras e ressentidas. E a culpabilização aplicada sobre cada mulher é capaz de tornar as tentativas de reagir a violências traumáticas, em si, novos traumas.

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Que a participação de Kilgrave (David Tennant) nesta temporada não decepcione a audiência: ela nada tem a ver com seus poderes, mas exatamente isso a torna ainda mais forte (e o episódio é dirigido por Jennifer Lynch, filha do criador de “Twin Peaks” que claramente bebeu da fonte do pai ao criar cenas de delírio psicodélicas e assustadoras).

Percebe-se um novo padrão neste segmento do Universo Cinematográfico da Marvel. Iniciado em “O Justiceiro” e retomado em “Jessica Jones”, os heróis não são figuras capazes de salvar o mundo. Na verdade, a grande jornada destas anomalias de um mundo doente é a da própria salvação.

Assista a todos os episódios de “Jessica Jones” clicando aqui.

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