Vencedor do principal prêmio no Festival Internacional de Cinema de Roterdã de 2018, “A Feiticeira Viúva”, longa de estreia do realizador chinês Cai Chengjie, é uma inventiva articulação entre filme de estrada e drama fantástico, percorrendo vilarejos rurais do norte da China enquanto capta a dura realidade e tratamento imposto à sua protagonista. É a partir de uma ótica observadora, e intervencionista em certos momentos, que o longa dita os rumos dessa curiosa jornada.
Wang Er Hao (Tian Tian) casou-se três vezes. Todos os matrimônios foram destruídos por tragédias acometidas a seus maridos. Devido a tal retrospecto, seus conhecidos e habitantes de pequenas comunidades próximas passam a olhar com superstição e temor a jovem viúva. Após bizarros acontecimentos partirem dela, a forma de tratamento e relação com seus antes detratores é transformada, passando a ser uma via de mão dupla entre interesses e necessidades – tanto da protagonista quanto dos aldeões.
“A Feiticeira Viúva” é competente na difícil tarefa de conciliar tantos elementos em uma obra, ao mesmo tempo, tão particular e comunicadora, apropriando-se levemente de alguns gêneros e subgêneros populares (além dos já citados fantasia e filme de estrada, o longa se arrisca em variadas situações de humor). Apesar de sua vigorosa composição visual, o determinante aqui é o acompanhar das desventuras da dupla (Er Hao é seguida por seu jovem cunhado), marcadas pela astúcia e necessidade de sobreviver em meio à uma tóxica sociedade.
Expressando sua feminilidade pelos feitiços e rituais concebidos, Er Hao ganha vantagem em ocasiões normalmente determinadas pela afirmação machista, como o filme trata de observar já em seus primeiros instantes. Logo, a precaução inicialmente envolvida pela viúva toma forma a partir de si como principal arma, a fim de superar a subjugação em que se encontra. O receio é atravessado pelo respeito, e finalmente pelo medo, após a jovem concluir que não há nada de errado com severidades.
A aproximação que “A Feiticeira Viúva” toma para si transita de forma nebulosa entre o real e imaginário, interiores ou exteriores à visão da protagonista. O efeito surtido por isso se adequa à mecânica que o filme compõe, como observação e criação: assim como os personagens encontrados ao longo do caminho, o espectador não chega a ter um esclarecimento quanto à natureza do que é empregado por Er Hao. Além disso, são constantes as visões e delírios, resultados da culpa e desamparo, vistos somente por ela (e mais uma vez a abordagem que Chengjie traduz em suas imagens é hábil ao retratar e demarcar possíveis distinções, alternando o ponto de vista entre a xamã e o seu pequeno cunhado).
O desenrolar de cada nova interação é visualizado pela paciente câmera do diretor, estilizada pelo predominante preto e branco. Privilegiando a oralidade, tais encontros são delineados para além da força de seus diálogos (enriquecidos pela veia cômica do filme), mas em muito pela exploração das expressões de seus intérpretes e o ambiente que os cerca. Praticamente todas as cenas em que a protagonista se vê como refém de requisições absurdas dependem dessa observação para seu pleno funcionamento narrativo, cedendo espaço a desdobramentos físicos e emocionais dos atores (a cena em que Er Hao enfrenta um casal se dá como melhor exemplo).
“A Feiticeira Viúva” trata seus temas urgentes com maturidade e sobriedade – lançando mão de recursos criativos a fim de organizar sua divertida, trágica e comprometida constatação e enfrentamento da subjugação feminina, ressignificando relações de poder por meio de idealizações próprias. O caráter discursivo e abrangente nunca ofusca, contudo, o desenvolvimento de sua personagem, aderindo-se organicamente à progressão da trama e sua construção como poderosa ficção.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival Olhar de Cinema de 2018.
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