“Domingo” guarda semelhanças bastante óbvias com dois outros filmes de Fellipe Gamarano Barbosa, “Casa Grande” (2014) e “Gabriel e a Montanha” (2017), sobretudo no olhar ácido que lança para as classes médias brasileiras. Mas, dessa vez, acompanhado de Clara Linhart na direção, Barbosa aposta numa frontalidade do comentário político e social que o leva a abandonar a empatia por seus protagonistas anteriores. “Domingo” é uma espécie de prolongamento por uma hora e meia da histriônica cena do churrasco de “Casa Grande” ou da conversa entre Gabriel e sua namorada sobre os problemas do Brasil em “Gabriel e a Montanha”.
O elemento que aponta mais claramente para essa mudança de tom é a ambientação da história no dia da posse de Lula na presidência da República (01/01/2003) e a opção dos diretores por pontuar “Domingo” com pequenos trechos do primeiro discurso do então novo presidente. Aparentemente periférica, irrelevante diante das questões familiares que movem os vários personagens do filme, essa mudança política, no entanto, direciona algumas das ações na trama que explicam o olhar de Barbosa e Linhart. No fim das contas, “Domingo” é sobre o nascimento de um novo momento do país, no qual o medo caricatural das classes médias de uma “vingança dos pobres” foi respondido com uma real ascensão dos de baixo a espaços (universidades, aeroportos) e possibilidades (aumento do consumo) que antes lhes eram interditados. Mas, para personagens como os do filme, isso pode de fato ter significado vingança, ruptura com a ordem natural das coisas, espécie de tomada da Bastilha.
Essa dimensão simbólica atravessa as relações presentes em “Domingo”. Os personagens existem muito mais como signos da dominação classista que como homens e mulheres complexos. Há pequenos momentos que fogem a essa regra, é verdade: a conversa do pai com o filho que se veste de menina e os momentos a sós de Bete (Camila Morgado) com seu cunhado Miguel (Ismael Caneppele). Mas, na maior parte do tempo, todos se comportam conforme uma armadura de classe, que os conduz a gestos torpes (no caso dos patrões) ou de resistência silenciosa (as empregadas). Não à toa, o único entre os dominados que se distancia dessa lógica acaba morto. O filme está mesmo anunciando (em retrospectiva, claro, logo com certo viés anacrônico) o começo de um novo tempo, em que, ao menos simbolicamente, os conflitos entre patrões e empregados se tornaram mais abertos.
Tais escolhas podem tornar “Domingo” excessivamente cínico em seu olhar para as classes médias, ou esquemático no entendimento das relações sociais. Mas esse tipo de cinema, menos nuançado na construção dos dramas humanos e mais interessado em explicar grandes questões, também é justo e possível de ser feito. Sobretudo num contexto de ataques diretos a essas pequenas, mas emblemáticas, transformações produzidas a partir de 2003. Ver, em 2018, a raiva com que um personagem como Nestor (Augusto Madeira) descarrega sua arma numa árvore faz pensar sobre o quanto “Domingo” não está também falando de um outro começo de era, a da “vingança dos ricos”.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para o 51º Festival de Brasília. Para ler outros textos de nossa cobertura, clique aqui.