As protagonistas de Karyn Kusama são tão diversas quanto peculiares. Em “Æon Flux”, de 2005, a heroína de Charlize Theron é a uma máquina de violência disposta a salvar a humanidade de seu iminente fim. Já em “Garota Infernal”, de 2009, a diretora construiu uma personagem praticamente oposta: a mulher (Megan Fox) possuída por um demônio é, basicamente, um sinal do apocalipse. Mas é em “O Peso do Passado”, que a cineasta alcança seu ápice, justamente por seguir caminho bem diferente de suas obras anteriores. Dessa vez, Kusama busca criar uma protagonista mais humana, quebrada – tanto fisicamente quanto mentalmente –, e o resultado é um drama policial impactante principalmente pela atuação de sua protagonista e pela capacidade de Kusama de criar o palco para Nicole Kidman brilhar.
Na trama, Kidman vive Erin Bell, uma detetive californiana que, 16 anos após um traumático trabalho infiltrada em um grupo criminoso, descobre pistas que a levam a crer que seu antigo inimigo, Silas (Toby Kebbell), está de volta. Erin, então, fará de tudo para encontrar Silas e encerrar sua história com ele. Paralelamente, a protagonista precisa lidar com seus próprios problemas pessoais, como sua rebelde filha adolescente.
De cara impressiona a atuação de Nicole Kidman. A atriz vencedora do Oscar por “As Horas” (2003) encarna aqui uma policial que consegue, ao mesmo tempo, nos fazer sentir medo e pena. O primeiro sentimento vem principalmente de seu olhar fixo, que não só estabelece uma personalidade determinada para ela, como também, em muitos momentos, nos faz sentir que, a qualquer momento, aquela mulher poderá explodir e destruir tudo que há na sua frente. Sua aparência desleixada e cheia de marcas, porém, deixa claro que há um ser humano emocionalmente quebrado, algo que a atriz consegue evocar com precisão quando sua personagem parece encurralada, adotando um tom de voz mais ameno e uma movimentação mais agitada, que expressa seu descontrole.
Percebemos, aos poucos, que Erin não tem lá muitos motivos para continuar sua vida. Tendo fracassado em tudo que tentou, a mulher é uma policial não muito querida pelos companheiros de corporação, uma mãe que falha ao tentar se reaproximar da filha adolescente e uma ex-esposa que não deixou muita saudade. Isso permite que Erin aja movida única e exclusivamente pelo desejo de vingança. Há de se destacar, aqui, o fato de o roteiro e a montagem não entregarem todas as respostas de primeira. Mesmo que desde o primeiro ato o público possa ter uma noção sobre o que aconteceu no passado, apenas no fim do segundo ato os flashbacks passam a expor todo o passado de Erin Bell.
Praticamente todas as cenas de “O Peso do Passado” giram em torno da protagonista, o que influencia diretamente na forma de fotografar Kidman. Além dos belos planos que filmam a protagonista de trás, destacando suas costas – e portanto sugerindo o peso que ela carrega por seu passado –, é uma constante, também, o uso de planos-detalhe e close-ups no rosto de Erin, mesmo que, no contraplano, seus interlocutores sejam filmados em planos médios. É, por uma escolha narrativa, uma personagem maior que o próprio filme, e que quase sempre se destaca do restante do elenco. Raros são os personagens que são filmados com a mesma intimidade que Erin, e são justamente os personagens chave de sua jornada: o ex-namorado vivido por Sebastian Stan e o vilão são alguns deles. Já o ex-marido está sempre longe, não só espacialmente como fotograficamente: é quase sempre enquadrado em planos abertos.
A grande sacada de Kusama e dos roteiristas Matt Manfredi e Phil Hay, porém, não é unicamente a construção visual, e sim a forma como a personagem reage às situações nas quais está inserida. É nítido que Erin guarda, dentro de si, o potencial para chacinar seus obstáculos, mas a policial nunca cede a essa solução. Erin parece ter até certa piedade de seus antagonistas, como se soubesse que, se ela partisse para um enfrentamento direto, o resultado seria sangrento. É interessante, portanto, ver como a personagem é testada ao longo da narrativa. Seja pelo genro abusado ou pelos criminosos com quem tem que lidar a fim de chegar a Silas, Erin sempre busca soluções pacíficas, o que sugere que todo seu ódio esteja canalizado para Silas.
Um dos principais elementos que acompanham as situações que testam os limites da protagonista é a trilha sonora. A música de Theodore Shapiro utiliza, nos momentos de maior tensão, acordes dissonantes que criam uma desarmonia que beira o cacofônico, como se Erin estivesse prestes a perder o controle e desmoronar. Logo, mesmo que Erin falhe miseravelmente em expressar de forma clara seus sentimentos e pensamentos, os demais elementos narrativos competentemente falam por ela.
Em suma, “O Peso do Passado” é impressionante por dois motivos. O primeiro é o trabalho primoroso de Kidman, que é capaz de provocar diferentes sentimentos no público sem nunca recorrer às muletas de atuação óbvias – não espere por desabafos catárticos ou cenas espalhafatosas; aqui, a protagonista está apodrecida, vivendo apenas para finalizar sua vingança e, portanto, poupa-se de exageros. O segundo é a forma como todos os demais elementos narrativos conseguem convergir para enaltecer sua protagonista. É como se aquele universo nascesse e morresse com o início e o fim da trama; como se a trajetória de vingança de Erin Bell fosse, na verdade, o epílogo de uma vida que há muito já acabou. Erin sabe que não pode mais corrigir seus erros e aceita, como missão final, o acerto de contas com seu passado.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2018. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.