Infiltrado na Klan

Infiltrado na Klan

O racismo norte-americano como experiência de longa duração

Wallace Andrioli - 3 de novembro de 2018

“The Answer” (1980), o segundo curta-metragem dirigido por Spike Lee, narra a empreitada de um roteirista negro contratado para escrever um remake de “O Nascimento de Uma Nação” (1915), de D.W. Griffith. Lee jamais escondeu seu incômodo com o lugar ocupado na história do cinema por esse filme, cujo racismo seria tratado como algo menor, quase irrelevante, diante de suas qualidades estéticas e narrativas. É significativo, portanto, que num momento chave de “Infiltrado na Klan” alguns personagens vejam “O Nascimento de Uma Nação”, apresentado em montagem alternada com a narração, por Harry Belafonte, do linchamento de Jesse Washington – episódio ocorrido em 1916 e parcialmente motivado pela então recente estreia do filme de Griffith.

Infiltrado na Klan Spike Lee

Há certa dose de genialidade na construção dessa sequência, já que, entre os muitos componentes estruturantes da linguagem do cinema clássico, do qual “O Nascimento de Uma Nação” é considerado o primeiro produto bem acabado, está o uso da montagem alternada para narrar eventos simultâneos. Portanto, Lee denuncia frontalmente o racismo de Griffith e seus efeitos perversos na sociedade da época por meio de uma técnica desenvolvida (mas não inventada) por esse diretor, frequentemente lembrada para diminuir a importância do discurso racial no entendimento do filme.

Lee age aqui como uma espécie de professor de história do cinema, inserindo na diegese de “Infiltrado na Klan” lições sobre o passado da arte – além de “O Nascimento de Uma Nação”, há uma cena emblemática de “…E o Vento Levou” (1939), outro clássico cujo racismo costuma ser encoberto por seu valor dramatúrgico, e referências em diálogos a diversos exemplares do blaxploitation dos anos 1970. Algo semelhante ao que Martin Scorsese fez em “A Invenção de Hugo Cabret” (2011), com a diferença que Lee é menos laudatório e mais problematizador. Enquanto o primeiro celebra a memória de um diretor com lugar cativo entre os maiores da história (Georges Mélies), o segundo contesta o cânone.

Infiltrado na Klan” é permeado pela ironia típica de Lee e por seu uso despudorado de recursos do cinema moderno: quebras da quarta parede, variações na razão de aspecto, inserções de imagens de outra natureza (no caso, cartazes de filmes citados pelos personagens e cenas documentais de eventos recentes) etc. Ainda assim, há aqui certo comedimento nesse sentido, ausente, por exemplo, de “Chi-Raq” (2015), última grande produção ficcional do diretor, explosão de modernidade estética e discursiva que chega a ser exaustiva.

Infiltrado na Klan Spike Lee

Mas é mesmo na capacidade de estabelecer pontes entre passado e presente que “Infiltrado na Klan” se filia abertamente ao cinema de Lee. Quando fez “Malcolm X” (1992), o diretor sobrepôs, nos créditos iniciais, um discurso incendiário do ativista às infames imagens do brutal espancamento de Rodney King pela polícia de Los Angeles, ocorrido no ano anterior. Interessava a ele falar de Malcolm X sem tirar o racismo dos anos 1990 do horizonte. Agora, Lee retorna à década de 1970, se infiltra, com seu protagonista (interpretado por John David Washington), na Ku Klux Klan, mas está sempre, de alguma forma, olhando para os Estados Unidos de hoje, que têm no poder homens diretamente ligados aos valores dessa organização.

Infiltrado na Klan Spike Lee

A relação é explicitada nas cenas documentais que encerram “Infiltrado na Klan”: a marcha neonazista de Charlottesville, um discurso de David Duke (ex-líder da KKK que inclusive é personagem do filme) louvando o episódio, atos de violência contra manifestantes antirracismo, um pronunciamento de Donald Trump condenando o extremismo supostamente presente nos dois lados. Falsas simetrias. O desespero instalado. Os agentes do ódio no poder. Spike Lee vai a 1978 para expressar sua angústia com o presente de seu país, mas acaba, acidentalmente, se comunicando diretamente com o Brasil de 2018, cujo presidente eleito teve suas posições elogiadas por… David Duke.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2018. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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