As Viúvas

As Viúvas

Gustavo Pereira - 4 de novembro de 2018

A primeiríssima imagem que “Viúvas” transmite para sua audiência é a de um homem invadindo o espaço de uma mulher. Não importa que Harry (Liam Neeson) e Veronica (Viola Davis) sejam um casal e o momento seja tenro. Há um desequilíbrio intencional na composição do quadro. A cama ocupa a tela integralmente e Veronica está “ajustada” à esquerda, com Harry vindo da direita até ela. Intercalado a este momento íntimo e sereno, uma fuga caótica onde Harry dirige uma van em sentido oposto, da esquerda para a direita.

A roupa de cama branca refletindo o amanhecer e a escuridão da noite que mal permite à luz dos postes na rua iluminar o interior do veículo. O silêncio do casal e o caos de tiros e outros homens questionando Harry sobre os imprevistos da operação. O sexo conjugal quase divino e o ataque impiedoso dos perseguidores, que fazem da van e de todos os seus ocupantes uma bola de fogo brutal. Na cena de abertura, o filme de Steve McQueen inunda a plateia com informações, tanto verbais quanto não-verbais.

As Viúvas Widows Viola Davis Steve McQueen

Em alguns segundos, fica implícito que Veronica tem uma relação de co-dependência com Harry, este sendo uma figura de poder e influência. Ela o ama, ele a protege. Quando ele “foge” desta relação como resultado de sua vida paralela, a agora viúva se encontra sozinha e, consequentemente, exposta a um mundo ao qual não pertence. Isto se aplica à protagonista, mas também às esposas de todos os outros homens dentro daquela van. De diferentes formas, cada mulher em “As Viúvas” é dependente de um homem e vítima involuntária de seus malfeitos. Que não são poucos.

Em “As Viúvas”, há sete personagens que desempenham papéis fundamentais na trama, além de dois coadjuvantes com pelo menos uma cena impactante e mais dois personagens menores, mas com algum desenvolvimento. A forma como tantos arcos narrativos florescem vem das trocas – como um personagem reage a outro e como os temas se aplicam a cada história individual – e da distribuição destes personagens dentro da história coletiva contada pelo filme – apesar das decisões de cada um terem um impacto em todos, duas histórias são contadas simultaneamente.

As Viúvas Widows Viola Davis Steve McQueen

A constante é que, no mundo de “As Viúvas”, o comando pertence a homens sórdidos. Harry liderava uma equipe de ladrões violentos e desonestos em suas vidas privadas. A operação fracassada tinha como alvo Jamal Manning (Brian Tyree Henry), um chefão do crime organizado em busca da “aposentadoria” na política. Para isso, disputa a eleição para vereador no 18º Distrito de Chicago. O substituto de Tom Mulligan (Robert Duvall) será escolhido entre Jamal e Jack Mulligan (Colin Farrell), filho de Tom, que precisa do cargo para manter a hegemonia política da família e também para evitar maiores investigações sobre um escândalo administrativo. Ao saber que Harry lhe roubou dois milhões de dólares, Jamal ameaça Veronica e lhe dá o prazo de um mês para devolver o dinheiro (numa cena sem nenhuma imposição física, mas, ainda assim, particularmente tensa). A partir dessa conexão, as duas histórias avançam, ora independentemente, ora se entrecruzando.

Em um ambiente tão masculino quanto ameaçador, a jornada das mulheres trata sobre a tentativa de empoderamento e consequente emancipação destas relações opressivas. Esta jornada é contada no conhecido gênero de filme de assalto, ou heist movie. No caso, o último assalto planejado por Harry, minuciosamente descrito num caderno, o qual Veronica e suas novas aliadas precisarão executar para conquistar suas independências. E McQueen é meticuloso ao desenvolver cada membro da equipe, de forma que suas motivações sejam convincentes e o espectador realmente se importe com o que pode acontecer a cada uma delas. O faz principalmente por ações, o que também avança a trama, de modo que o filme não se torne cansativo ou expositivo.

As Viúvas Widows Viola Davis Steve McQueen

Quando Alice (Elizabeth Debicki), por exemplo, aparece pela primeira vez, está com um olho roxo. Seu marido Florek (Jon Bernthal) pede que ela coloque uma maquiagem ali, pois lhe causa “incômodo” vê-la daquele jeito – embora ele não tenha feito esta conexão quando a agrediu. Ao longo do filme, Alice enfrenta diferentes formas de violência física, e a maneira como ela reage a cada uma delas nos mostra seu amadurecimento e fortalecimento durante o desenrolar da trama. O mesmo acontece com Linda (Michelle Rodriguez), que perde sua loja pela irresponsabilidade do marido, e com Belle (Cynthia Erivo), que não tem tempo para ser mãe da própria filha por estar sendo “mãe” – babá – dos filhos de Linda por precisar de dinheiro. A ideia que as três se unam a Veronica na empreitada não apenas soa verossímil, mas lógica.

Paralelamente, a podridão do mundo “legítimo” no 18º Distrito de Chicago é representada por uma polícia preconceituosa e negligente, incapaz e desinteressada em garantir a segurança de inocentes, e pelos dois concorrentes à vaga de vereador. Numa cena brilhante, Jack sai de um evento de campanha na periferia do Distrito em que falava da importância do “empoderamento feminino via empreendedorismo”, entra pela porta esquerda de seu carro e conversa com sua assessora sobre os riscos de uma investigação a fundo sobre o que foi feito com a verba de uma obra. Ele então sai pela outra porta, a da direita, em frente ao seu comitê de campanha.

Nesta tomada sem cortes, há a noção clara de que Jack é “duas-caras” (o comício de um lado, o comitê do outro). Pela duração do diálogo, inferior a um minuto, também mostra o abismo social entre a periferia e a vizinhança rica onde está instalado o seu comitê, embora ambas estejam dentro do mesmo distrito, e como a pobreza de um lado é o que alimenta a riqueza do outro. E se Jack é um criminoso “de colarinho branco”, Jamal não é nada melhor do que ele, ameaçando viúvas e permitindo que seu braço direito Jatemme (o incrível Daniel Kaluuya) pratique atos de violência brutal em seu nome.

As Viúvas Widows Viola Davis Steve McQueen

Se “As Viúvas” fosse um bolo, o assalto seria a cobertura de chocolate visível a olho nu. Mas são as discussões sobre gênero, política, raça e sociedade os ingredientes da massa deste bolo. Não pensamos em ovos quando comemos um bolo, mas não podemos fazer um bolo sem eles. É essa relação de ingredientes, tão homogênea, proporcionalmente equilibrada e coesa, assada pelo tempo certo no “forno” de Steve McQueen, que faz do todo algo maior do que o somatório das partes individuais. Um bolo delicioso.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2018. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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