Faleceu aos 77 anos Larry Cohen, versátil cineasta de gênero com afiada visão para os problemas sociais de sua época. Após seu pico de popularidade nos anos 70, uma vasta onda de filmes Slasher consumiu a década seguinte, fazendo com que Cohen perdesse a credibilidade com os estúdios e fosse rotulado como apenas mais um diretor de terror. Mesmo assim, Cohen foi capaz de continuar gravando de forma prolífica até os anos 90, quando assumiu o cargo de roteirista e passou a dirigir cada vez menos.
Cohen pode não ter tido o nome marcado na cultura popular como foi o caso de gênios do horror como Wes Craven ou George Romero, porém isso não reduz o impacto de seu olhar cronista sobre as paranóias e terrores da cidade grande. Entre o Blaxploitation e o terror, sua carreira é costurada pela vontade de mergulhar em uma sociedade em colapso, com a finalidade de apontar seus problemas endêmicos a partir de premissas absurdas. Questões raciais, de classe, consumismo, identidade e religião: nunca o cinema popular foi capaz de revelar tantos distúrbios sociais de forma tão subliminar e irônica quanto nos filmes de Larry Cohen.
Em seus filmes sempre há algum tipo de interferência extraordinária que faz as pessoas se depararem com o terror de cada dia. Nasce um Monstro (1974), um dos filmes mais conhecidos do diretor, tem como premissa esse bebê mutante que escapa durante o parto, mas seu desenrolar dramático se dá principalmente pelas dificuldades familiares e paternas, cuja resolução é dada pela aceitação do filho. A Ambulância (1990), último filme feito para o cinema do Cohen, apresenta a paranoia noturna de se viver em Nova York, onde a ameaça é tão incerta quanto violenta, uma noção geográfica pouco datada e bastante global.
A esperança é que sua morte seja capaz de dar espaço para redescobrirem seus filmes. Mesmo tendo pouco destaque nas últimas três décadas, a crença de Larry Cohen na ficção tem sido cada vez mais necessária numa época em que o cinema tem tido cada vez mais medo de render-se ao absurdo e às alegorias que fizeram o horror ser o gênero que ele é hoje (e sempre foi, antes que venham os defensores do pós-horror, meta-horror…).
O Chefão de Nova Iorque é um filme que nunca seria feito em 2019. Não há um nome que possua um senso tão provocador quanto Cohen tinha, que esteja disposto a sujar as mãos para que esse tipo de obra seja feita. Temas tão tenebrosos como o custo da ascensão do homem negro e a manutenção de bases escravagistas na sociedade americana são integradas ao filme na base da bala, entregues na selvageria fílmica de costume. É basicamente como se blaxploitation mandasse “Poderoso Chefão” pros infernos e transformasse o Don Corleone em presunto. Outro filme que não dá para explicar, só dá para sentir e agradecer pela trilha do James Brown existir.
O “Videodrome” da histeria coletiva ocidental, o filme-apocalipse que coloca Extraterrestres como Deus e Deus como um homem, ou algo por aí. Outro exemplo de um filme do Cohen absolutamente ditado pela correria: os gêneros cinematográficos (ficção científica, filme policial, blaxploitation, terror, etc) vão se esbarrando como se fossem nova-iorquinos apressados em sua rotina frenética. Isso gera uma das montagens mais agressivas que qualquer filme da época teve (contando até o pessoal da Nova Hollywood, que em sua maioria quase nunca conseguiram chegar aos pés da brutalidade de Cohen), não há nada nesse filme que não esteja em movimento e tudo se junta de um jeito inacreditável. Quando assassinatos aleatórios começam a acontecer por pessoas que dizem terem sido ordenadas por Deus para cometer os crimes, joga-se qualquer moralidade e qualquer constrangimento pela janela e Cohen entrega um surto em forma de cinema.
Se um colunista do New Yorker transformasse um conto do Borges em um filme de monstro gigante, poderíamos começar a visualizar o que Cohen fez com “Q” (1982). Seguindo seu jeito de cronista, que coloca Nova York como uma panela de pressão empresarial, cultural, global, Cohen criou uma história detetivesca cósmica sobre uma grande caçada uma serpente voadora que consegue transparecer qualquer ideia prévia que a premissa do filme sugere. É ver pra crer: um filme fantástico em todos os sentidos (e não-sentidos) da palavra.
Esse filme, apesar de lembrar muito o que o Brian De Palma vinha fazendo nos anos 80, carrega menos obsessividade pelas imagens e tenta contextualiza-las de forma mais objetiva. É a história de uma aspirante a atriz que é assassinada por um diretor de cinema que quer usar as imagens de sua morte em um filme estrelado pela sua sósia. Há belas divagações a respeito da mídia, da imagem da mulher (filme começa com uma sessão de fotos eróticas da protagonista), e principalmente de como as imagens são tão descartáveis quanto cruciais para nossa existência.
Parece difícil mas é o filme mais vulgar do Cohen, possui uma história que parece ter saído da literatura pulp. O protagonista é o estereótipo de paranóico deslocado na cidade grande, procurando alguma luz numa Nova Iorque que é subliminarmente ameaçadora, como se transformar-se num herói fosse encontrar seu lugar no mundo (melhor aparição do Stan Lee em qualquer filme!). Há terror, violência, romance, tudo entregue da forma mais escrachada possível como se Cohen soubesse que as próximas décadas não pudessem ser mais possíveis para seus próprios filmes.
A franquia que levou Larry Cohen ao status de grande diretor de terror parte da ideia de um bebê mutante e no paralelismo entre o mal estar familiar e a visão inocente da criança que vê um mundo hostil e reage da mesma maneira. O primeiro filme é o mais sólido dos três, mas o drama particular é expandido na continuação A Volta do Monstro (1978), em que várias mulheres nos EUA dão a luz a crianças monstruosas. Ampliar a crise faz com que a sociedade fique mais vulnerável à crítica de Cohen, como se o sofrimento e a ruína estivessem presentes em cada lar americano. O último filme da trilogia, It’s Alive III: Island of the Alive (1987), já tem um olhar revisionista sobre a carreira do cineasta, quase 10 anos após o segundo filme da trilogia. Aqui é tudo levado aos limites, os bebês monstros já são naturalizados pela sociedade criando uma série de situações absurdas que demonstram mais ainda até onde vai a barbárie que é a sociedade americana, objeto de estudo durante toda a carreira do Cohen.