A sinopse de “Em Trânsito” aponta uma trama ambientada na segunda guerra mundial, durante a invasão nazista na França. Ao começar o filme, porém, percebemos que Christian Petzold esculpe seu filme de forma a nos confundir intencionalmente. “Em Trânsito”, teoricamente, se passa nos anos 40, mas seus personagens vestem roupas que não parecem tanto com as típicas daquele tempo, ambulâncias modernas percorrem as ruas e não há nenhum sinal de símbolo nazista. Logo constatamos o que já está óbvio: “Em Trânsito” não se passa nos anos 40. Mas aos poucos chegamos a outra constatação: o filme também não se passa nos dias de hoje.
A obra de Petzold parece flutuar pela história da Europa pós-nazifascismo. Partindo da história de um alemão que tenta fugir da Europa durante uma perseguição de um governo opressor não especificado, “Em Trânsito” acaba desenhando um panorama histórico de todo o velho continente nos últimos 80 anos e nos mostra como histórias de perseguição, segregação e fuga deixaram de ser um fato isolado na história do mundo e se tornaram um mito, que se repete ciclicamente. Com tal proposta, Petzold é feliz tanto ao falar sobre a perseguição dos nazistas durante a segunda grande guerra, como também ao falar sobre a ascensão da extrema-direita na atualidade e até mesmo sobre a crise dos imigrantes.
Criando esse deslocamento temporal, o longa-metragem faz com que seus personagens também pareçam perdidos, tanto pela indefinição temporal da narrativa, quanto por suas jornadas, que parecem ser alteradas a todo momento pelos acontecimentos da trama. “Em Trânsito” traz personagens que estão sempre em movimento, sempre em fuga, sempre buscando alguma alternativa distante da realidade na qual estão presos. O interessante é que, mesmo com esses constantes deslocamentos, o filme ainda consegue expor a tragédia da condição de seus personagens, ao trazer uma conclusão que sugere que todos os esforços foram em vão, pois, apesar de tudo, o protagonista e os outros personagens não conseguem superar essa realidade.
Se analisarmos os personagens como alegorias para a brincadeira narrativa de Petzold, que dificulta a identificação do período no qual o filme se passa, é justo pensarmos que a ideia de que os personagens estão presos a essa Europa opressora e violenta é uma alegoria para a própria condição do continente, que parece viver em eterno retorno, incapaz de espantar os fantasmas do passado. Outra característica interessante e que muito enriquece o filme é o fato de Petzold filmar as ruas de Marselha sempre desertas, como se os personagens transitassem não pela cidade de fato, mas por um lugar imaginário, metafórico, que não necessariamente corresponde ao mundo que imaginamos.
A sensação é a de que Georg e seus amigos estão desgarrados do espaço-tempo, como os fantasmas de “A Ghost Story“, mas sem o véu branco que caracteriza os espíritos, e que a simples substituição dos cenários permitiria que o filme fosse centrado em qualquer contexto sociopolítico das últimas décadas, no qual o governo ou grupos extremistas fizeram da violência um meio de manter a ordem e demonizaram seus opositores para viabilizar suas ações, bem como já foi feito, ao longo da história, com judeus, comunistas, imigrantes…
Não seria errado imaginar os personagens de “Em Trânsito” como fantasmas, que são evocados justamente pela leitura do diário do escritor que narra parcialmente o filme em voz off. Esses elementos fazem com que a sensação seja a de que estamos assistindo à materialização de histórias do passado em um mundo próximo do atual. “Nós sabemos aonde vamos, mas não sabemos de onde viemos” dizem os primeiros versos da música que toca durante os créditos finais. É uma síntese de toda a situação em que os personagens estão. São fantasmas cujas histórias precisam ser lembradas para que o futuro não repita o passado, como hoje vemos o presente fazer.