O texto a seguir contém leves spoilers de “Toy Story 4”.
A saga “Toy Story” acompanhou toda a minha vida. Nasci em 1993 e, portanto, quando o primeiro filme saiu, em 1995, eu sabia menos sobre o mundo do que o próprio Buzz Lightyear ao sair da caixa achando que de fato é um patrulheiro estelar. Porém, as imagens da fita VHS que eu tinha em casa já foram o suficiente pra eu me apaixonar pela história. Tinha os bonecos do Woody e do Buzz e brincava com eles horas a fio, mesmo que não entendesse uma palavra do que eles dissessem – afinal, os bonecos só falavam em inglês.
O segundo filme, por sua vez, já chegou em um momento diferente. Com seis anos de idade, eu passava por um momento familiar complicado, no qual meus pais viviam em brigas e eu acabava no meio delas. Não poderia, então, não me identificar com a história dos personagens com medo do iminente abandono – o pinguim sem voz preso no topo da prateleira me assombrou por um tempo. Me via, ali, pela primeira vez, em um filme, mesmo que inconscientemente.
Colocando lado a lado os filmes com minha trajetória, me divirto ao pensar que o terceiro filme, que encerra uma fase da vida dos personagens que se despedem de Andy e passam para uma nova criança, Bonnie, saiu justamente no ano em que eu decidi vir morar com meu pai. As duas mudanças foram importantes: se, para os brinquedos, a nova “dona” garantiu um novo momento, novas brincadeiras e de fato uma nova vida para eles, para mim, vir morar com meu pai representou uma transformação completa na minha vida – e hoje digo tranquilamente que todos os anos nos quais estive com meu pai foram melhores para mim do que todos o anos anteriores da minha vida.
O terceiro capítulo de “Toy Story”, porém, muito se parecia com o fim daquela saga. Afinal, os personagens finalmente entenderam o fim do ciclo com Andy e abraçaram a vida nova. Assim como, em 2010, ao vir morar com meu pai, acreditei ter finalmente fechado um ciclo de amadurecimento em minha vida. Mas eis que, em 2017, mais um filme da série é anunciado: “Toy Story 4”. A franquia ressurge e, mais uma vez, por ironia do destino, em um momento no qual eu passo por uma transição da minha vida – algo que é tema central no filme de Josh Cooley.
Já adaptados à rotina da pequenina Bonnie, Woody, Buzz e os demais brinquedos partem em uma viagem de fim de semana com a criança e sua família, até que, por um acidente, Garfinho, um brinquedo feito pela própria Bonnie com restos de um talher, palitos, arame e massa de modelar, se perde. Woody, então, abandona o grupo e parte em uma missão para resgatar o Garfinho, que é o brinquedo favorito de Bonnie. Partindo dessa premissa, “Toy Story 4” se estrutura ao redor de várias sequências de aventura, nas quais os brinquedos precisam chegar do ponto A ao B, e, no caminho, reencontram velhos amigos e refletem sobre suas condições. No meio dessas aventuras e desventuras, porém, cada um daqueles personagens tão carismáticos descobre um pouco mais sobre si mesmos e suas ambições.
Diferente dos longas anteriores, que reafirmam os laços entre brinquedos e crianças, “Toy Story 4” oferece um caminho diferente. Para começar, o longa apresenta o conceito dos brinquedos “independentes”, que vivem espalhados por aí, sozinhos, sem uma criança específica. Alguns vivem em parques, outros na rua, e por aí vai. Se o terceiro episódio da saga trata apenas da transição de uma criança para a outra, o mote do novo filme é a busca por um novo sentido na vida que não dependa dessa relação com os humanos. Em outras palavras, é o rompimento do cordão umbilical, a emancipação final que poderia permitir a um personagem como Woody ter seus próprios objetivos. A chegada da vida adulta.
É interessante essa abordagem, pois “Toy Story 4” traz um conjunto de personagens já experientes, mas ainda marcados por seus passados e com fortes relações com os humanos. Se Woody ainda não consegue superar a despedida de Andy, e redireciona, assim, todo seu amor e devoção a Bonnie, a antagonista, Gaby, por sua vez, vive em função da execução de um plano que pode levá-la aos braços de uma criança pela primeira vez. São, portanto, personagens que buscam ser aceitos a todo momento, um mote já presente ao longo da saga, mas que aqui é desconstruído por colocar em cheque essa necessidade de aceitação. Essa busca por aceitação, portanto, acaba sendo subvertida em uma jornada de autoconhecimento.
Essa desconstrução parte principalmente pelo uso de Betty como referência. A boneca, que, esquecida no terceiro capítulo da saga, aqui surge como uma dessas figuras desgrenhadas que vivem uma vida independente de terceiros, tem papel de destaque por guiar os demais brinquedos com um olhar mais maduro. É como se Betty estivesse em uma fase pós-rompimento, e figuras como Woody e Gaby ainda estivessem em busca de dar esse salto para trocar a juventude pela vida adulta, representada por essa independência e pelo abandono das brincadeiras com as crianças.
Outro personagem-chave para o funcionamento dessa narrativa de transformação é justamente o Garfinho. Como dito, é um boneco feito manualmente pela própria Bonnie, a partir de objetos projetados para outros fins – o corpo é um garfo de plástico descartável, os pés são palitos de madeira –, cimentando a ideia de que a fase “brinquedo” (ou infância) não é algo inerente ao que aqueles personagens são fabricados para ser. Enquanto a própria Betty, como a boneca que é, foi planejada para ser utilizada em brincadeiras e escolhe viver sua própria vida de aventuras longe disso, Garfinho se sente como o lixo que foi planejado para ser, mesmo que receba todo o amor do mundo de sua criadora.
O que torna “Toy Story 4” um filme tão especial e, de certa forma, complexo, é o fato de o roteiro de Stephany Folsom e Andrew Stanton reconhecer os diferentes estágios de vida em que cada um daqueles personagens está. Alguns parecem ainda presos a uma necessidade de carinho e atenção típica da juventude, mesmo que já possuam idade avançada, algo que ocorre pelo fato de esse carinho ter sido negado a eles durante a infância – algo ao qual me relacionei bastante ao lembrar que só pude ter de fato uma amizade com meu próprio pai aos dezessete anos. Outros estão à beira de uma transição, mas vivem em negação por não terem ainda a força para cortar esse laço e buscar a própria independência afetiva – algo ao qual também me relacionei por estar em um momento de transição profissional, em que busco caminhar com minhas próprias pernas.
No final, é belo perceber como Woody só consegue ter sua própria voz quando abdica de ter aquela que impuseram a ele por meio da inserção da caixinha de diálogos que fica em suas costas (“tem uma cobra na minha bota”). Metaforicamente, o personagem tira de suas costas o peso daquilo que foi a ele ensinado, e, podendo olhar para um novo horizonte, finalmente se despedirá de seu passado e conhecerá uma vida e um mundo diferentes. Acho que todos temos nossos momentos de Woody ao longo da vida, e eu estou no meu. Por mais que doa tirar a caixinha e cortar algumas amarras, talvez seja hora de agradecer por tudo que meu pai fez por mim, e eu mesmo tirar um peso dele ao buscar meus caminhos sozinho.
Ironias da vida, mais uma vez assisto ao lançamento de um filme “Toy Story” que marca tanto uma transição da minha trajetória. Como boa arte, o filme me fez refletir sobre a necessidade de dar novos passos em minha própria jornada, bem como, com sua proposta evocativa nostálgica, me fez relembrar todas as transições pelas quais passei e que fizeram de mim o sujeito que sou hoje. Fico extremamente feliz em saber que, desde a última dessas viradas da vida, que é a sincronizada com o terceiro longa da saga, pude finalmente ter com meu pai a amizade e o carinho que via entre os personagens de “Toy Story”, e aprendi (e aprendo) com ele desde então. Obrigado por tudo, paizão.