3% – 3ª temporada

3% – 3ª temporada

O futuro (distópico) já começou

Gustavo Pereira - 5 de julho de 2019

Em “Onda”, oitavo e último episódio da terceira temporada de “3%”, a comandante Marcela (Laila Garin) diz à conselheira Nair (Zezé Motta): “O povo da Concha quer a gente lá, pra botar ordem naquele caos”. A afirmação – e a verdade contida nela – representa com perfeição o Brasil de 2019.

3% 3 por cento porcento terceira temporada Netflix

Para quem não se lembra, a segunda temporada terminou com a fundação da Concha, uma alternativa para os habitantes do Continente que não passassem no Processo. Uma “terceira via”, como cansamos de ouvir no último período eleitoral: nem Maralto, nem a Causa. A Concha foi a forma de Michele (Bianca Comparato) reformar o mundo sem revolucioná-lo.

O grande problema com as reformas é que elas dependem de um arranjo social fraco o suficiente para, de fato, mudarem alguma coisa. O sociólogo francês Émile Durkheim descreve em “As regras do método sociológico” a resistência que estruturas sociais fortemente pronunciadas opõem a qualquer modificação no status quo. E o Maralto, com o poder repressivo numa mão e a chance de ascensão social na outra, constitui uma estrutura social forte demais para admitir a mera existência da Concha. Nem a placa com a frase “Todos são bem-vindos” é o suficiente para conquistar a simpatia do grosso do Continente: aqueles que decidem ir para esta “terceira via” são vistos como fracassados e párias sociais.

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Uma frase de 1906, creditada ao jornalista investigativo americano Alfred Lewis Henry, complementa a teoria de Durkheim e ajuda a entender a nova temporada de “3%”: “há apenas nove refeições entre a humanidade e a anarquia”. Uma crise reduz drasticamente os recursos da Concha e inviabiliza o sonho de fartura e bonança. Visando racionar água e alimentos, Michele cria a “Seleção”, uma variante do famigerado Processo.

A solução é óbvia e irônica. Glória (Cynthia Senek) defende que, apesar da Seleção ser oposta à filosofia da Concha, “a gente cresceu acreditando no Processo”. Para martelo, toda cabeça chata é prego. A ordem social não foi mudada pela Concha, o que permite a volta das mesmas práticas opressivas na primeira adversidade. Ainda assim, a Seleção é o ponto baixo na terceira temporada de “3%”. Ocupando quase metade dos episódios, as provas não apenas são imitações pálidas das apresentadas no Processo, como também são desprovidas de qualquer tensão. Personagens principais, Rafael (Rodolfo Valente), Joana (Vaneza Oliveira) e Marco (Rafael Lozano) são ridiculamente perspicazes nas provas, o que tira qualquer suspense se eles vão ou não permanecer.

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Ney Matogrosso faz participação especial em “3%”

“3%” também tem um desequilíbrio imenso no desenvolvimento de seus personagens: enquanto os protagonistas têm motivações bem definidas, conflitos interessantes e consistência narrativa, os coadjuvantes são rasos e unidimensionais. Parece que as palavras “alívio cômico” e “drama” estavam escritas em cada página onde Xavier (Fernando Rubro) e Arthur (Léo Belmonte), respectivamente, foram mencionados. Não há uma razão de ser por trás das tentativas – frustradas – de piadas e dos conflitos. Outro incômodo é a conveniência com que problemas complexos são facilmente resolvidos por parafernálias tecnológicas ou conhecimentos extremamente específicos dos personagens.

Ainda assim, a temporada tem um saldo geral positivo pelos já mencionados paralelismos com o Brasil de hoje. Após uma década de prosperidade econômica desacompanhada de mudanças estruturais da sociedade, uma profunda crise econômica obrigou os brasileiros a fazer uma escolha. Se a população da Concha imediatamente se voltou para o Maralto, entusiastas da ditadura militar alcançaram o poder com um discurso saudosista dos “bons tempos de ordem”. Glória, brilhantemente interpretada por Senek, mesmo diante de todas as evidências de que aquela é a decisão errada, fecha os olhos e grita “Maralto” com mais força, porque encarar a realidade é difícil. O povo, inflamado demais para ser racional, recebe de braços abertos seus próprios algozes, porque “cresceu acreditando no Processo”.

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Alguns dizem que uma crise revela a pior face do ser humano. Outros, que ela revela a sua verdadeira face. Seja na série de Pedro Aguilera, seja na esquina de casa, estamos diante dessa face. Como narra o cancioneiro de famosa emissora televisiva, “o futuro já começou”. E ele não é bonito.

Assista a todos os episódios de “3%” clicando aqui.

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