Em uma entrevista de divulgação de “Era uma Vez em… Hollywood”, Quentin Tarantino descreve a proposta de seu filme como algo semelhante ao que foi feito por Alfonso Cuarón em “Roma“. A obra do multi-premiado mexicano parte da história de vida do próprio diretor para fazer uma análise dos conflitos sociais da classe média do bairro Roma, na cidade do México, durante os anos 70. Não há, porém, nostalgia em “Roma”. O longa-metragem de 2018 é deliberadamente frio, e até pelo uso digital da fotografia em preto e branco – escolha provavelmente feita para evitar a granulação, que costuma evocar nostalgia –, mantém um olhar triste e distante para a melancólica trajetória da empregada doméstica protagonista. Apesar de também fazer de “Era uma Vez em… Hollywood” um filme que lança um olhar para o passado, Tarantino faz, nesse recorte, uma construção inversa. Se Cuarón faz de tudo para que sua estética não fomente nostalgia, Tarantino garante que cada frame de seu novo trabalho seja nostálgico.
O filme acompanha a rotina de dois personagens fictícios de Hollywood: o astro em declínio Rick Dalton (Leonardo DiCaprio) e seu melhor amigo e dublê, Cliff Booth (Brad Pitt). Entretanto, Tarantino passa longe de construir uma narrativa linear focada na jornada da dupla. A ideia é, mantendo sempre os dois como epicentro dramático da trama, flutuar pela Los Angeles de 1969, reconstruir o cenário daquela Hollywood luminosa do fim dos anos 60 e, para isso, Tarantino faz bom uso também de figuras ilustres do período. Sharon Tate (Margot Robbie), Roman Polanski, Steve McQueen… Diversas estrelas são utilizadas por Tarantino não como personagens de relevância dramática, mas como meios de situar o espectador naquele cenário. As figuras mencionadas, que apresentam pouquíssimos ou nenhum diálogo, funcionam em “Era uma Vez” como um carro velho ou um pôster da Copa do Mundo de 70 funcionam em “Roma”, para familiarizar o espectador e ajudar na digressão histórica da obra.
Não é por acaso, porém, que Tarantino nos situa em um cenário que reconstrói com cautela a Hollywood dos anos 60, mas nos coloca sob o olhar justamente dos personagens ficcionais. Mesmo que o esforço para alcançar o nostálgico esteja evidente a cada esquina da Los Angeles de 1969, o cineasta passa longe de qualquer busca por um realismo ou estética de documentarista. O nostálgico parece ser sempre um meio para que, com o cenário apresentado, Tarantino construa um verdadeiro conto de fadas, no qual memória, realidade e imaginação se fundem em um universo diegético que flutua entre a mais perfeita reconstrução histórica e a mais delirante ficção.
Tarantino consegue até mesmo brincar com a relação de farsa e realidade por meio de sua dupla protagonista. Enquanto Dalton, o ator, está quase sempre em sets de filmagem, Cliff, o dublê, que é quem de fato está nos momentos de ação das obras protagonizadas por Dalton, está sempre lidando com situações mais rotineiras. Cabe a Cliff a função de dirigir pela cidade, consertar a antena da televisão da casa de seu amigo, alimentar o cachorro… Mas não só isso: é também por Cliff, o personagem mais “pé-no-chão” de “Era uma Vez…”, que o público tem acesso aos acontecimentos mais soturnos da narrativa, enquanto Dalton, como quase todos os astros hollywoodianos retratados, parece envolto na magia dos anos 60.
Ao passo que mostra como figuras menos ortodoxas no meio hollywoodiano acabam penetrando nos becos que expõem a parte sombria da cidade, Tarantino também utiliza essas figuras como guardiões da magia que permeia Los Angeles. Cliff é, além de dublê, amigo e “faz-tudo” de Dalton. Pitt vive um personagem criado para funcionar quase como um protetor de uma cidade que parece entorpecida pelas transformações culturais e artísticas que ilustram o fim dos anos 60. Não por acaso, o trailer onde Cliff Booth vive fica ao lado de um cinema drive in, como se o personagem de Brad Pitt fosse um segurança que existisse para proteger o próprio cinema e garantir a continuidade da aura nostálgica e lúdica que permeia o universo apresentado.
O que dá a “Era uma Vez em… Hollywood” seu ar de contos de fadas, porém, é o fato de Tarantino reservar seu ato final inteiro para consagrar seus personagens e, mais uma vez, brincar com as possibilidades que estão na mesa quando constrói uma obra que mistura uma reconstrução histórica irretocável com uma abstração da realidade digna das mais bizarras narrativas de universos alternativos. Quentin Tarantino pode não ter nos apresentado seu melhor filme, mas certamente entregou uma obra que substitui o amargo do real pelo doce da fantasia. “Era uma Vez em… Hollywood” é o conto de fadas tarantinesco de que nós não sabíamos que queríamos. Que homenageia uma cidade, uma geração, uma arte e um conjunto de artistas, ao passo que conclui sua trama de uma forma que nunca seria possível em outro lugar se não no cinema.