O caso de censura envolvendo o prefeito do Rio Marcelo Crivella e a Bienal do Livro ilustra uma face patética e perigosa do populismo hipócrita de governos conservadores com popularidade em baixa.
O argumento é batido: “proteger os menores da nossa cidade”. Ninguém em sã consciência se oporia a proteger crianças. Pela pureza típica da infância, qualquer ato contra ela cria repulsa social imediata. Como a rede de tráfico de crianças mantida, segundo reportagem do canal português TVI, pela Igreja Universal do Reino de Deus. A IURD é liderada por Edir Macedo, tio de Crivella.
Crivella chama um beijo de dois adolescentes de “conteúdo sexual” e diz que não está censurando a publicação, apenas que os exemplares “precisam estar embalados em plástico preto e, do lado de fora, avisando o conteúdo”. Parece razoável, mas não é.
A HQ “Jovens Vingadores” não é voltada para crianças, mas sim para adolescentes. “Ainda assim, são menores!”, dirá um gaiato. É aí que a hipocrisia do prefeito se junta à do seu simpatizante: é exatamente na adolescência que o ser humano começa a descobrir sobre a própria sexualidade. A parcela da população que espera os 18 anos para dar um beijo é mínima. A ficção voltada para esse público está apenas abordando um tema comum a ele.
Defender a tese maluca de que um jovem de 16 anos, leitor médio desse tipo de HQ, não sabe o que é um beijo na boca, ou pode ter a própria orientação sexual influenciada por um beijo gay, demonstra descolamento da realidade e/ou uma sexualidade bastante frágil.
Mas isso se torna irrelevante: o próprio debate já serve para desviar a atenção popular de problemas reais que o prefeito tem se mostrado incapaz de resolver em seu mandato. Como na educação, onde o Estado do Rio (incluindo escolas municipais) foi o único a não atingir a meta do Ideb em nenhum segmento.
O Governo do Estado, chefiado por Wilson Witzel, aliado político de Crivella, é outro defensor das crianças até a página 2. Há cerca de um mês, sua Polícia Militar matou com um tiro nas costas um jovem de 16 anos. Bandido? Não, atleta da base do América.
Crivella e Witzel formam com o Presidente Jair Bolsonaro um power trio do “conservadorismo de butique”: enquanto usam a defesa das crianças para justificar preconceitos escancarados, atacam frontalmente a proteção aos direitos das mesmas crianças que dizem defender. Correndo por fora, o governador de São Paulo João Doria manda recolher material didático por conter “apologia à ideologia de gênero” e deixa alunos sem poder estudar oito disciplinas. Há de se questionar se os mandatários querem realmente proteger as crianças ou apenas uma manchete no jornal.
Tais medidas encontram eco e respaldo porque uma parcela considerável da sociedade brasileira é preconceituosa. Ao ver figuras públicas expondo homofobia na vitrine, o “cidadão de bem” se sente empoderado a reproduzir tais comportamentos na sua vida cotidiana. Enquanto a popularidade de Bolsonaro derrete como sorvete ao sol de meio-dia, se abraça aos evangélicos, seu maior (talvez último) reduto de apoio. Os mesmos evangélicos que fecham os olhos para todos os desmandes do bispo Crivella, desde que ele mande fiscais apreenderem livros. “Salvamos as criancinhas”, provavelmente comemoram agora.
Jovens Vingadores esgotou e “driblou” Crivella, mas a fiscalização da Prefeitura nesta sexta forçou a Bienal a recolher outros títulos LGBT, consumando a censura. Crivella tentará a reeleição no ano que vem. Amparado pelas posturas de Bolsonaro e Witzel, a tendência é de que tais medidas se repitam. Se ganhar mais um mandato na Prefeitura do Rio de Janeiro, Crivella terá provado – mais uma vez – que o Brasil prefere bufões autoritários a administradores competentes.