Pessoas Normais

Pessoas Normais

“São engraçadas as decisões que a gente toma porque gosta de alguém”

Gustavo Pereira - 21 de outubro de 2019

A história de “Pessoas Normais” se passa na Irlanda do começo da década, mas não é diferente do Brasil atual: crise econômica, desemprego, preconceitos de classe, apatia social, depressão e violência. O título que Sally Rooney escolhe, aludindo a dois protagonistas esmagados por essa engrenagem, dá a conotação de um mundo ainda mais deprimente do que o retratado. Se isso é o “normal”, não quero ler o “problemático”.

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Na Literatura, a construção do mundo da história é essencial para dar peso a tomadas de decisão dos personagens e também para compreender seus conflitos internos diante de dilemas e antagonismos. Diferente das mídias audiovisuais, onde um plano de estabelecimento resolve grande parte dos problemas (5 segundos de carros voadores e telas de LED imensas e sabemos estar no futuro, por exemplo), o único recurso de um livro para construir seu mundo é a escrita. E a escrita também é o único recurso para apresentar personagens e desenvolver a trama. Rooney encontra um equilíbrio estabelecendo o mundo de sua história de forma sutil, indicando a data em que cada capítulo se passa e mencionando en passant protestos e eleições. Funciona, mas demonstra o quanto a autora não se imaginava sendo lida fora da Irlanda quando escreveu “Pessoas Normais”.

Vítimas das circunstâncias

A crise econômica, ainda que no pano de fundo, é fundamental para dimensionar a relação entre Marianne e Connell. Ela, uma jovem rica que sofre bullying; ele, um filho de mãe solteira academicamente brilhante e socialmente inseguro. Lorraine, mãe de Connell, é faxineira na casa de Marianne. É por Connell ir buscá-la no trabalho que ele e Marianne estabelecem um vínculo improvável. Mas é pela forma como Marianne é vista (e pela que Connell deseja ser visto) que a relação cresce às escondidas.

Rooney captura com uma sensibilidade notável a transição humana no período que cobre o fim do colégio e o começo da faculdade. A fase em que efetivamente entramos na vida adulta é quase sempre quando um peso insustentável é colocado sobre nossos ombros. Sendo financeiramente privilegiada, Marianne pode postergar essa decisão e optar por um curso que se sinta mais identificada. Connell, ao contrário, sabe que esta é sua única chance de fugir do ciclo da pobreza de sua família. Se ele fizer a faculdade de Direito, pode conseguir um bom emprego e levar uma vida “certa” (a noção do que é “certo” é recorrente nas reflexões do personagem). Marianne diz que ele deveria estudar Letras. De fato, a Literatura o comove. Mas um país em crise econômica precisa de alguém com sensibilidade artística? Como a vocação de Connell vai lhe garantir o sustento?

(Abro aqui parênteses para mencionar os dois últimos ministros da Educação do Brasil: Ricardo Vélez Rodríguez defendeu a reserva da universidade para o que chamou de “elite intelectual“. Seu sucessor, Abraham Weintraub, foi além e disse que o dinheiro do contribuinte deve financiar cursos que gerem “retorno imediato” para se readequar à “realidade do país”. Estes são os contrapontos reais que justificam a angústia de Connell. De fato, países em crise dão mais valor a técnicos de ar condicionado do que a escritores.)

Pessoas normais, violências “normais”

Se por um lado a Literatura não pode mostrar, mas apenas descrever, ela é a única mídia que permite ao espectador/leitor entrar na mente dos personagens e saber exatamente o que eles pensam (o Cinema pode fazer isso com narrações em off, mas sem a mesma eficácia). “Pessoas Normais” trabalha de forma brilhante com essa dualidade entre o que os protagonistas pensam e o que fazem. Enquanto Connell está constantemente tomado por pensamentos complexos que não consegue externar, quase sempre provocando interpretações equivocadas sobre seus atos, Marianne justifica para si todas as situações degradantes em que se coloca, comparando-as a todos os abusos sofridos ao longo da vida e criando um padrão do qual não se considera digna de fugir. Por motivos distintos, os dois se consideram merecedores da infelicidade que os consome.

Em última análise, o tema central de “Pessoas Normais” é a violência, que se manifesta em diferentes formas. A violência de um Estado incompetente que coloca o país na penúria e exige que os jovens sacrifiquem seus próprios sonhos para pagar a conta. A violência de uma sociedade que marginaliza qualquer um que tente ser diferente. A violência de um sistema educacional incapaz de conciliar vocação e subsistência. E a violência que infringimos a nós mesmos quando sufocamos nossos desejos para nos sentirmos aceitos por este mundo esquizofrênico. Sally Rooney escreve uma história sobre como essas violências nos quebram para além de qualquer possibilidade de reparação, sendo impossível voltar atrás após uma tomada de decisão.

Sob esse recorte, pouco importa se a história se passa na Irlanda, no Brasil ou em Marte. Todos conseguimos nos relacionar a ela.

 

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