Não havia forma melhor de começar a 3ª Mostra Sesc de Cinema se não com a exibição de cinco curtas-metragens nacionais das mais variadas regiões do Brasil e com as mais diferentes propostas. A mostra, que tem como mote exibir os filmes de todos os cantos do país para dar visibilidade às mais diversas visões de mundo presentes no cinema nacional, abriu seus trabalhos com “Aurora” (Sergipe), “Chamando os Ventos: Por Uma Cartografia dos Assobios” (Pará), “Catadora de Gente” (Rio Grande do Sul), “Guará” (Goiás) e “Jéssica” (Rio de Janeiro). Abaixo, comentários sobre cada um dos curtas exibidos.
Os cenários dignos de um teatro e a fotografia em preto e branco logo entregam que as realizadoras de Aurora visam criar uma atmosfera idílica para o curta que acompanha brevemente três mulheres negras em diferentes fases da vida. Temos uma adolescente, uma mulher de meia-idade e uma idosa. Três personagens diferentes, que poderiam muito bem ser a mesma pessoa em estágios distintos, e que operam como representações de questões típicas de suas faixas etárias.
É interessante observar, por exemplo, como as personagens conversam por meio de suas atitudes. A adolescente se maquia e solta o cabelo momentos antes de a mulher adulta remover uma peruca de sua cabeça, como se a primeira ainda estivesse no estágio de construir-se para o mundo, enquanto a segunda, por sua vez, já estivesse em um processo de auto-desconstrução – algo visível principalmente pela fragilidade emocional imposta pela ótima atuação de Mercedes Rodrigues.
Outra qualidade do filme é como a fotografia de Pablo Ascanio utiliza as luzes para criar climas diferentes para cada um dos núcleos. A personagem mais jovem é quase sempre filmada com luzes de múltiplos ângulos, que deixam cada centímetro de seu rosto completamente iluminado, enquanto a idosa já possui mais sombras e, em dado momento, é filmada sem essa luz de preenchimento que completaria a fotografia. Mesmo sem diálogos, o curta é bem sucedido nessas escolhas por permitir que elas falem em nome das silenciosas figuras que o protagonizam.
Podemos perceber as certezas, incertezas e dores de cada uma, sejam elas físicas ou psicológicas, principalmente por essa variação de escolhas estéticas que constróem pequenos detalhes em cada um dos registros, nos permitindo olhar pelo buraco de uma fechadura e compreender de forma sutil o que permeia as mentes de cada uma daquelas mulheres. O fato de Moraes e Monge conseguirem utilizar os três corpos dessas mulheres como registros de suas trajetórias, dores e sonhos, torna a obra fascinante.
Com apenas quatorze minutos de duração, a obra de Marcelo Rodrigues tem como proposta construir uma relação entre o vento e a trajetória de vida das pessoas entrevistadas. Para isso, são registrados depoimentos de diversas figuras anônimas, que tiveram suas vidas marcadas, de alguma forma, por histórias nas quais o vento foi protagonista ou um importante coadjuvante.
A maior qualidade do curta é a forma como ele de fato retrata o vento como um protagonista, não só por utilizar o som a seu favor como também por não projetar imagens dos entrevistados, e sim registros nos quais o ambiente é influenciado pelo vento. Sejam imagens de pássaros voando ou folhas sendo balançadas, tudo evoca uma certa mitologia inerente à relação das pessoas com o vento.
Pelo fato de os relatos irem de simples memórias até tradições religiosas, as imagens ganham certo peso mitológico que torna ainda mais fascinante a forma como as lentes de Rodrigues preenchem de conteúdo registros tão simples. Mesmo que simples, o curta acaba por conjurar certo misticismo por tratar com tanto fascínio e respeito algo invisível, mesmo que de presença inquestionável.
Cedendo sua câmera para que Maria Tugira Cardoso, uma catadora de lixo do Rio Grande do Sul, conte sua história, Mirela Kruel consegue capturar tanto o drama da vida de uma pessoa com um passado tão doloroso, quanto a doçura de uma figura tão carismática. O curta é, dos exibidos na cerimônia de abertura da 3ª Mostra Sesc de Cinema, o mais simples em quesitos estéticos, mas nem por isso é o de menor valor.
Tendo uma personagem tão adorável como foco de seu curta-documentário, Kruel não precisa de esforços para fazer com que sua obra crie laços com o espectador. A simplicidade na fala e a meiguice com que Maria se expressa conquistam facilmente por mostrar como uma pessoa com passado sofrido e ciente de todos os preconceitos que passou consegue encarar seu histórico sem se deixar abalar.
É interessante que, pelo fato de Kruel não mostrar suas perguntas e nem mesmo intervir nos depoimentos de Maria, o documentário jamais aprofunde algum dos muitos temas políticos e sociais inerentes aos relatos de uma pessoa como a documentada. Mesmo assim, os temas estão todos lá. O posicionamento do curta é, mesmo que silencioso, presente e forte. Ao fim, “Catadora de Gente” pode não ter como proposta levantar bandeiras políticas de forma clara, mas mostra com eficiência como a politização da vida é algo inevitável. Cada e todo depoimento concedido para a realização do filme mostra uma diferente faceta da desigualdade social e do racismo do Brasil, um país que, mesmo que seja mitologicamente fundado em cima da miscigenação, ainda é perseguido pelo racismo, seu maior inimigo histórico.
O mais fantasioso filme exibido na cerimônia de abertura da 3ª Mostra Sesc de Cinema é, infelizmente, também o mais inconsistente em sua proposta. Membro da nova leva de filmes fantásticos que tem feito sucesso em festivais brasileiros com obras como o fantástico “As Boas Maneiras” e o criativo “O Animal Cordial“, “Guará” acompanha um lobisomem que ataca a capital goiana durante a noite.
“Guará” alterna entre o terror, a fantasia e a comédia, mas peca por não saber amarrar os três elementos de forma que haja alguma base em comum nos três gêneros. Quando imerso na atmosfera de terror, “Guará” é bastante eficiente, principalmente pela fotografia que aposta em poucas cores, remetendo diretamente o tingimento de filmes do cinema da era do preto e branco, e por utilizar as sombras para criar misticismo acerca do corpo da criatura que ameaça a cidade.
O problema vem quando o filme tenta saltar do terror para a fantasia e para a comédia, não criando o balanceamento necessário para que os gêneros coexistam, como acontece, por exemplo, no slasher, gênero popularizado por administrar terror e comédia de forma a satirizar o horror e tecer comentários sobre o próprio cinema. Se, isoladamente, as piadas das cenas finais de “Guará” até fazem algum sentido, como uma unidade, uma única obra de arte, o curta parece ter ideias isoladas demais para desenvolver qualquer experiência, seja ela narrativa ou apenas sensorial, mais complexa do que meros sustos ou risadas diante de um homem fantasiado de lobo guará.
A obra de Galba Gogóia acompanha o retorno de Jéssika, uma mulher trans, para o lar de sua mãe, após um longo período fora da cidade. Jéssika, como boa parte da comunidade LGBTQ+ no Brasil, sofreu preconceitos que a marcaram e definiram algumas de suas relações familiares, e que provavelmente também foram o principal fator que levou a jovem a se distanciar da casa de sua mãe.
Todo o filme gira em torno do reencontro de Jéssika e sua mãe, os diálogos sobre as vidas das duas figuras e uma tentativa da mãe de se reaproximar de sua filha. É bem clara a intenção de Gogóia de criar um filme manifesto, que alerte para o problema da violência contra a comunidade LGBTQ+ no Brasil. Partindo dessa premissa, porém, não há muitas qualidades cinematográficas que façam do filme algo além de um vídeo promocional sobre o assunto.
“Jéssika” não é um mau filme, mas se ancora demais em sua temática sem que haja uma construção estética que transforme uma boa ideia em uma boa obra audiovisual. Problemas no som, que em certos momentos é ininteligível, também afetam o curta, que acaba sendo salvo pelos esforços das atrizes que conseguem dar vida a figuras tão unidimensionais como são Jéssika e sua mãe. Essas figuras são totalmente entregues aos estereótipos da jovem trans excluída da sociedade e da senhora de idade que, apesar do bom coração, ainda é vítima da cultura da sociedade retrógrada na qual foi criada.
Seria injusto não comentar também sobre a construção do cenário da casa, que é um ponto extremamente eficaz no estabelecimento desses estereótipos comentados. As paredes do lar da mãe da protagonista, por exemplo, são lotadas de imagens religiosas, mostrando como o ambiente cristão tradicional no qual a personagem cresceu é extremamente hostil para uma pessoa que desafia o modelo de vida do cristianismo. Até mesmo essa construção, porém, parece exagerada, colocando quase uma dezena de signos religiosos que parecem gritar algo que poderia facilmente ser simbolizado por uma única cruz ou quadro.
Utilizar tais clichês, claro, não é necessariamente um defeito, mas faz de “Jéssika” apenas mais um filme em um grande mar de obras que tratam da temática LGBTQ+, cedendo aos clichês mais simples sem aproveitá-los de maneira diferente de tantas outras obras.