O Jovem Ahmed

Os irmãos Dardenne entre o conservadorismo radical e o humanismo anódino

Wallace Andrioli - 10 de dezembro de 2019

Em alguns de seus filmes, os irmãos diretores Jean-Pierre e Luc Dardenne lidaram com protagonistas arredios, que beiram a antipatia. O adolescente de “O Garoto da Bicicleta” (2011) e os jovens adultos de “Rosetta” (1999) e “A Criança” (2005) vêm à mente num primeiro esforço. Mas o caso de Ahmed (Idir Ben Addi), desse “O Jovem Ahmed”, é um pouco mais complicado. Afinal, o garoto é um fanático religioso, radicalizado pelo imã de sua comunidade, que tenta assassinar sua professora por ela ser, supostamente, uma apóstata e infiel.

Os Dardenne seguem aqui o estilo característico de seu cinema, com câmera na mão, sempre próxima dos atores, e planos longos. É a conhecida urgência visual dos filmes dos diretores, que já há algum tempo perdeu a força de outrora. Ainda que “Dois Dias, Uma Noite” (2014) tenha provocado algum impacto, “O Garoto da Bicicleta” permanece como o último grande filme da dupla. Mas a escolha por esse universo do extremismo religioso na Europa contemporânea ao menos traz para esse cinema um componente novo e interessante.

Os personagens dos Dardenne são, acima de tudo, fortes, sobreviventes em ambientes hostis, mesmo que eventualmente portadores de mais vícios que virtudes. Mas a força que Ahmed carrega tem menos a ver com as violências sofridas por muçulmanos nos países europeus (esse componente resta implícito no filme) que com uma ética da convicção inabalável. Ao menos a princípio, o protagonista de “O Jovem Ahmed” não abre mão por nada de suas crenças. A missão autoatribuída de matar a professora permanece no seu horizonte mesmo após a punição legal que sofre e ele tenta cumpri-la até os instantes finais da narrativa.

Nesse sentido, o olhar dos diretores e roteiristas para esse tema remete ao controverso livro “Submissão” (2015), de Michel Houellebecq. Nele, o autor francês apresenta um cenário relativamente distópico em que seu país passou a ser governado por um partido muçulmano, que pôs fim no Estado laico e impôs os preceitos da sharia. Houellebecq contrapõe a fraqueza da cultura ocidental, iluminista, à força incorruptível do islamismo. É uma provocação instigante, ainda que atravessada por um flerte com posições da extrema-direita francesa.

Ao acompanhar atentos cada movimento de Ahmed rumo ao cumprimento de sua missão, os Dardenne registram a presença dessa força imparável no interior da Bélgica contemporânea – que, por sua vez, responde com um Estado de bem-estar laico, bem intencionado, mas aparentemente incapaz de remodelar a visão de mundo do protagonista. “O Jovem Ahmed”, então, vai se configurando como um filme próximo de uma visão conservadora, no entanto coesa e até radical em sua proposta de seguir até o fim um personagem fanático.

Isso até a última cena, quando os Dardenne escancaram sua postura esperançosa, crente no poder dos valores e ações consideradas positivas no Ocidente atual. Vitimado por sua própria obstinação, Ahmed termina pedindo desculpas à professora. Politicamente, soa adequado, até bonito. Mas, como cinema, é o retorno dos diretores e roteiristas a um lugar de conforto, a um humanismo realista que, base de sua obra, já há algum tempo vem se tornando anódino.


Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2019. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.

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