Talvez o cinema de Clint Eastwood seja aquele que, hoje, mais se aproxima do ideal mac-mahonista de mise en scène. Seus filmes são cada vez mais diretos, frontais, econômicos, precisos. Não há uma cena desperdiçada, um momento que o espectador metido a montador possa chamar de desnecessário. Tudo leva a alguma outra coisa. E Eastwood, também em sintonia com o mac-mahonismo, evita tanto o maneirismo visual quanto o realismo bruto. Sua aproximação da realidade se dá mediada por uma dramaturgia classicista, transparente, mas claramente presente. Há sempre a sensação de contação de história, com arcos dramáticos bem definidos, em detrimento da mera observação dura da vida.
Na década atual, o diretor acrescentou ao seu cinema uma predileção por histórias reais, filmando roteiros inspirados em livros biográficos ou em matérias jornalísticas sobre protagonistas semianônimos da América contemporânea. Tem sido assim desde “Sniper Americano” (2014). “O Caso Richard Jewell” segue essa tendência, ao contar a história de um segurança dos Jogos Olímpicos de Atlanta, em 1996, acusado injustamente de terrorismo. Mais uma vez Eastwood trata da construção do heroísmo (e da vilania) numa sociedade obcecada por esses arquétipos.
Jewell (Paul Walter Hauser, em grande interpretação) é um homem comum, acostumado à invisibilidade, repentinamente alçado à condição de herói e, pouco depois, transformado em vilão. Ao contrário dos protagonistas de “Sniper Americano”, “Sully” (2016), “15h17: Trem Para Paris” (2018) e “A Mula” (2018), ele não é exatamente um ás na sua área de atuação. Visto como esquisito por muitos, Jewell mantém uma obsessão pelas forças da ordem: ex-policial, ele ainda se considera parte da corporação. Decorrem daí os sucessivos empregos de segurança, nos quais se comporta com esmero considerado excessivo por seus colegas. Isso permite a Eastwood continuar falando de uma ética do trabalho que, no olhar conservador que lhe é característico, move a sociedade americana e atesta seu valor. Reside aqui o ufanismo (discreto) do filme.
Mas “O Caso Richard Jewell” não é construído sem fissuras no que poderia ser uma visão edulcorada dos Estados Unidos. Eastwood e o roteirista Billy Ray lidam com um personagem imediatamente associado ao fracasso num país apaixonado pela ideia de sucesso: o homem branco de meia-idade sulista, pouco atraente fisicamente, que mora com a mãe e alimenta certa mitomania. A imagem perfeita do potencial terrorista de extrema-direita – Walter Hauser inclusive interpretou um sujeito do tipo em “Infiltrado na Klan” (2018), de Spike Lee. Mas as aparências podem enganar. Se em “A Mula” o protagonista, um funcionário dos carteis mexicanos, parecia inofensivo às autoridades em razão de sua idade (quase 90 anos), em “O Caso Richard Jewell” ocorre o contrário: alguém verdadeiramente inocente é considerado culpado pelo FBI e pela imprensa por se encaixar num perfil previamente delineado.
Aqui Eastwood mira em duas instituições que, ao menos na diegese, ameaçam as liberdades individuais. Os policiais federais, representantes do governo americano, e o jornalismo sensacionalista. Liberal radical, o diretor desconfia dos órgãos governamentais por princípio. Sua posição está melhor representada na narrativa pelo advogado vivido por Sam Rockwell (que mantém em seu escritório um quadro com a frase “temo mais o governo que os terroristas”). Já a crítica à imprensa, em tempos de embate dessa com Trump (e sendo Eastwood um republicano), pode ser lida como uma tentativa de desmoralizar os inimigos do atual presidente.
Mas há dois pontos a serem considerados. Primeiro, “O Caso Richard Jewell” não vilaniza os jornalistas em detrimento do governo, mas com o governo. Portanto, se projetado no presente de 2019, é como se Eastwood mandasse às favas os dois lados dessa briga. Além disso, a construção da personagem da repórter Kathy Scruggs (Olivia Wilde) remete muito mais a um passado representacional do cinema americano – vem logo à mente o inescrupuloso e irresistível Chuck Tatum (Kirk Douglas), de “A Montanha dos Sete Abutres” (1951) – do que a uma vontade de falar da política atual.
E assim, juntando classicismo e reconstituição de histórias da América contemporânea, Clint Eastwood vem se firmando, na fase atual de sua carreira, como uma espécie de cronista dos valores de uma sociedade. Em “15h17: Trem Para Paris”, ele se arriscou a borrar as fronteiras entre o real e o ficcional, aproximou o clássico do moderno ao colocar os personagens da história contada interpretando a si próprios e revivendo momentos absolutamente banais de uma viagem à Europa. Em “A Mula” e agora em “O Caso Richard Jewell”, o diretor retornou a uma concepção dramatúrgica mais convencional, adepta de uma representação do real mediada por regras da encenação e da construção narrativa transparentes. Janela para o mundo. Eastwood, no fim das contas, sempre foi mais herdeiro de Don Siegel, um classicista inserido cronologicamente na modernidade cinematográfica, que do modernista Sergio Leone.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2019. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.