Num texto clássico sobre a importância do cinema para o conhecimento histórico, o historiador Marc Ferro falou da capacidade das imagens de testemunhar o que não era inicialmente pretendido por quem as produziu, especialmente em contextos autoritários. “State Funeral”, de Sergei Loznitsa, que apresenta uma compilação de cenas do funeral do líder soviético Josef Stalin, em 1953, é o tipo de filme que parece chamar para si análises inspiradas nesse texto de Ferro. No entanto, esse é um caso em que as imagens falam sobretudo o que está explícito nelas. Talvez não haja fissura a explorar, contra-discursos escondidos no discurso oficial de elegia a Stalin.
Na excelente comédia “A Morte de Stalin” (2017), de Armando Iannucci, Svetlana (Andrea Riseborough), a filha do recém-falecido líder comunista, questiona Lavrenti Beria (Simon Russell Beale), responsável pela polícia política do regime soviético (a NKVD), sobre a espontaneidade das reações emocionadas das pessoas que participam do funeral de seu pai. Beria diz que ninguém ali está fazendo nada forçado. Dado o tom de absoluto deboche desse filme, é até possível interpretar a fala em perspectiva irônica, mas, diante dos registros de multidões aos prantos apresentados por Loznitsa, parece pouco factível que mesmo uma ditadura definida por alguns como totalitária conseguisse controlar o comportamento de tanta gente ao mesmo tempo. Guardadas as especificidades, é como acreditar que os milhares de torcedores que aplaudiam o General Emílio Garrastazu Médici em jogos no Maracanã, durante a ditadura militar brasileira, o faziam simplesmente por medo de represálias.
Então, ainda que não seja propriamente um documentário de “tese”, “State Funeral” constrói um olhar sobre o apoio social que regimes autoritários são capazes de mobilizar. Surge aqui um diálogo, não intencional, com uma historiografia relativamente recente que busca tratar desse tema. O interesse não pelas resistências heroicas ou silenciosas, mas por comportamentos que alimentam o consenso social em torno de ditaduras. O objetivo de Loznitsa se torna mais explícito quando, ao final, ele apresenta números relativos às vítimas do stalinismo. O filme se encerra como que gritando um questionamento sobre a adesão sincera de pessoas ordinárias a regimes tão cerceadores da liberdade.
Uma pergunta que, a princípio, é deixada em aberto. O conhecimento de outros filmes de Loznitsa gera a tentação interpretativa de aproximação do presente. Bielorrusso naturalizado ucraniano, o diretor é um crítico veemente da herança soviética na região. Como nos ficcionais “Minha Felicidade” e “Uma Criatura Gentil” (2017), ele estaria estabelecendo pontos de contato entre o passado stalinista e o presente da Rússia de Vladimir Putin, contra a qual a sua Ucrânia esteve em guerra recentemente.
Mas aqui, novamente, se corre o risco de perder de vista as imagens em si mesmas. Reside nelas, afinal, a força acachapante de “State Funeral”. Com qualidade visual impressionante após restauradas, elas ao mesmo tempo carnificam, dão rostos e sentimentos ao apoio massivo a Stalin, e se mostram capazes de dimensionar o tamanho do poder soviético e o impacto de um episódio central na história do século XX. Nesse sentido, o resultado lembra “O Triunfo da Vontade” (1934). Mas, claro, com um adendo crítico no final que Leni Riefenstahl jamais acrescentaria em seu filme de propaganda do Partido Nazista.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto do Festival do Rio de 2019. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.