Os primeiros momentos de “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu” sugerem um documentário bastante interessado em utilizar a família do diretor como ponto de partida para uma análise social mais ampla. Bruno Risas apresenta, pela narração, a história de como sua família teve que abandonar seu bairro para voltar para uma região mais simples da cidade, conhecida como o lar para operários. Até pelo fato de, no começo, a câmera de Risas passear muito por São Paulo, essa ideia do estudo de classes é algo bastante tangível.
O que ocorre após a introdução, porém, é até mais interessante. Risas escolhe, em vez de expandir o escopo, reduzi-lo, e faz de “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu” um filme bem mais intimista – e até invasivo – do que sua abertura sugere. O longa mescla documentário e ficção para acompanhar o processo de desgaste emocional da família do cineasta, que passa 110 minutos filmando seus pais, avó, irmã e a si próprio, convivendo dentro de casa, no meio de brigas, incertezas e inseguranças. Risas expõe até mesmo as próprias feridas e a de seus familiares no processo, a fim de criar uma obra que documente e expurgue os demônios existentes nos atritos daqueles indivíduos.
Risas enclausura seus personagens em casa, e raramente filma fora da residência. A ideia é explorar ao máximo o próprio ambiente familiar, criando uma mise-en-scène naturalista por registrar – ou, em alguns momentos, simular – o cotidiano. “Ontem” é uma obra cuja decupagem se dá pelo acompanhamento do ordinário e na constatação de como o ordinário escala para as microagressões dos personagens. Quaisquer momentos normais de uma família acabam sendo afetados pelo estresse que permeia o ambiente e levando os personagens a brigar. Uma das características que chama atenção é que “Ontem” não é a mera exploração do próprio lar feita por Risas, e um dos elementos que melhor constrói essa diferenciação é o som.
O som é, muitas vezes, um elemento subestimado no cinema, mas é sempre imprescindível narrativamente. Em “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu”, planos simples que filmam um beco ou um comércio no lado externo da residência são potencializados pelo som e pela trilha. Há sempre a sugestão de uma presença sobrenatural ou extraterrestre no cosmo do filme. É como se a família estivesse tão enclausurada naquele ambiente e na constante luta pela sobrevivência – Risas nos deixa cientes de que o “pai” de todos os problemas da família é a crise financeira –, que o mundo externo se tornasse um universo à parte.
Risas ainda é inteligente ao sempre encontrar e utilizar momentos que registrem sua mãe olhando pela janela ou pela porta, como se sonhasse com um respiro, com a chegada de algo nov0 ou até mesmo com uma fuga, fortalecendo essa sensação de aprisionamento dos personagens – que existe tanto pelo que eles exprimem, quanto pelas escolhas de direção, calcada em muitos close-ups e planos estáticos que nos prendem aos rostos dos personagens e os sufocam. É criado, então, um interessante contraste metalinguistico pela narrativa, já que a personagem sonha em trocar a realidade pela fantasia, bem como a forma do filme ensaia, em alguns momentos, substituir o documentário pela ficção.
Funcionando tanto como exercício de autoterapia pelo registro do drama familiar, quanto pelo estudo da relação entre documentário e ficção, “Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu” pode até rejeitar seu potencial como veículo de estudo de classes, mas isso jamais é demérito para uma obra que escolhe e assume sua veia pessoal de forma tão sincera. É, além de uma homenagem, um desabafo e um espelho, para o qual a família de Risas poderá olhar e ver refletir a realidade que vivem. É cinema retratando e estudando de forma íntima e rica o que mais importa: pessoas.
Texto originalmente publicado como parte da cobertura do Plano Aberto para a 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Para conferir toda a nossa cobertura, clique aqui.