Logo no início de “Guerra dos Mundos”, após a narração introdutória de Morgan Freeman, Steven Spielberg rapidamente apresenta o personagem de Tom Cruise, a situação familiar em que ele se encontra (pai divorciado e desleixado, tem que cuidar do casal de filhos durante um fim de semana) e estabelece o mote que regerá a ação do filme dali em diante (a invasão da Terra por alienígenas e a fuga desesperada do protagonista para salvar a si e aos seus). “Guerra dos Mundos” é um filme sobre as coisas que importam.
Em mais de um momento de “Guerra dos Mundos”, Ray Ferrier (Cruise) nega, ou tenta negar, aos filhos o direito de olhar. Ao caminhar em meio a destroços de um avião numa rua residencial, ele carrega a pequena Rachel (Dakota Fanning) no colo e pede que ela feche os olhos; ao se render à necessidade de matar o personagem paranoico de Tim Robbins, o protagonista coloca uma venda na garota, poupando-a da violência extrema do ato; quando Robbie (Justin Chatwin), o filho mais velho, se separa do pai durante uma grande batalha entre militares americanos e alienígenas, ele evoca seu desejo de ver o evento épico.
Aqui vale salientar a precisão de Spielberg nas escolhas do quê e quando mostrar. Na primeira cena citada, vê-se o cenário de destruição do qual Rachel é poupada. É fundamental para a narrativa vislumbrar o tamanho do estrago produzido pelos alienígenas. Na segunda, o diretor consegue de forma impressionante preservar a integridade dramática do acontecimento, mesmo sem exibi-lo: mantendo a câmera na garota durante o assassinato de Harlan (Robbins), ele ressalta a pureza que merece proteção; ao mesmo tempo, torna audível o confronto entre os dois homens, recusando escamotear a brutalidade das ações de Ray. Já na terceira, Spielberg abandona Robbie quando o personagem escolhe ser testemunha ocular da guerra. Ray, Rachel e a câmera seguem na direção oposta à dos tiros e explosões, que ocorrem no extracampo.
Essa última opção do diretor é importante para compreender a essência do filme. Em mais de uma ocasião ao longo de sua carreira de décadas, Spielberg lamentou a decisão final do protagonista de “Contatos Imediatos do Terceiro Grau” (1977), que abandona a própria família para viajar ao espaço com alienígenas. “Guerra dos Mundos” poderia ser definido como a antítese perfeita de “Contatos Imediatos de Terceiro Grau”. Se esse último é embalado pelo encantamento com o desconhecido e estruturado sobre um processo gradual de revelação apaixonada do fantástico, o primeiro rejeita quase por completo essa dimensão. “Guerra dos Mundos” é uma experiência fílmica visceral sobre um homem descobrindo as responsabilidades da paternidade e fugindo constantemente da ação para salvar seus filhos. A adesão de Spielberg aos caminhos seguidos por esse personagem é total. Essas são duas obras-primas do diretor, que se negam e se complementam, já que reveladoras de momentos distintos de uma mesma filmografia em processo de amadurecimento.
Por fim, é interessante notar como as adaptações cinematográficas do clássico literário de H. G. Wells foram capazes de se conectar com aspectos políticos e do imaginário de seus respectivos contextos de produção. A versão da década de 1950, dirigida por Byron Haskin, reverberou a paranoia anticomunista da Guerra Fria. A polonesa, de 1981, foi fruto de um momento efervescente do cinema político do país, se inserindo numa vasta produção crítica ao regime comunista então vigente – e se trata, na verdade, de uma releitura bastante livre do livro de Wells. Já a de Spielberg carrega muito do impacto dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, sob o qual os Estados Unidos ainda se encontravam. Da forte sequência de apresentação dos alienígenas, que culmina num Ray coberto com a poeira resultante da desintegração de inúmeras pessoas – imagem que evoca o estado de muitos sobreviventes após os ataques ao World Trade Center –, à postura ambígua em relação ao militarismo (“Guerra dos Mundos” simultaneamente rejeita a guerra e demonstra uma admiração contida pelos soldados que se engajam nela), há bastante do imaginário pós-11 de setembro no filme.
Mas a adaptação de Spielberg talvez seja a primeira que consegue extrapolar esse condicionamento contextual. Não se trata de reivindicar qualquer noção de “universalismo” ou “atemporalidade” para o filme, mas de reconhecer a força de suas escolhas formais e dramáticas. A longa sequência no porão de Harlan é o melhor exemplo disso: ainda que perfeitamente integrada à narrativa, ela funciona também como um segmento praticamente autônomo, em que Spielberg e o diretor de fotografia Janusz Kaminski constroem um balé de corpos gracioso e apavorante por um espaço exíguo explorado pelos alienígenas; em outros pequenos momentos dela, os dois grudam a câmera no trio de personagens, tornando quase palpável o medo experimentado por eles.
Essa capacidade de evocar sentimentos e sensações compatíveis com diferentes tipos de situações extremas faz de “Guerra dos Mundos” um filme bem mais aberto a ressignificações em outros momentos históricos que seus antecessores. Inclusive num presente de pandemia do novo coronavírus, em que estão na ordem do dia decisões como com quem se quer estar confinado (com certeza não com um paranoico voluntarista como Harlan) e por quem se sacrifica tudo (as pessoas amadas). Mas aqui, mais do que a mera presença desses temas, importa que Spielberg imprime neles intensidade dramática e inteligência visual, ampliando temporalmente seu alcance.