“Destacamento Blood” explicita, mais uma vez, a importância dos mecanismos do cinema moderno para os filmes de Spike Lee. Trata-se de um olhar para a Guerra do Vietnã marcado pelas experiências de uma parcela da população americana que não se identificava totalmente nas motivações do conflito. Lee recorre ao antinaturalismo para tentar desconstruir um olhar hegemônico sobre essa guerra, erigido em grande parte pelo próprio cinema. Daí, por exemplo, a referência crítica à franquia “Rambo” na fala de um personagem, mas não só: há alguns procedimentos estilísticos utilizados aqui para desinvisibilizar o que o naturalismo torna invisível.
As recorrentes inserções de fotografias e filmagens de personagens e episódios históricos citados pelos personagens reforçam um didatismo bem característico de Lee, que frequentemente interrompe as narrativas de seus filmes para explicitar sua pretensão de, como um professor, reconstruir a história dos Estados Unidos através do cinema. Os muitos closes frontais, com os atores na prática quebrando a quarta parede, é outra escolha repetida em “Destacamento Blood” (e na obra do diretor como um todo). A troca aberta de olhares com o espectador põe em questão o lugar (social, racial) ocupado por esse último e realça o caráter discursivo do filme. Por fim, aquela que talvez seja a opção mais criativa e acertada de Lee: a escalação dos mesmos atores idosos para interpretar suas versões jovens, durante a Guerra do Vietnã. A relação deles com esse passado na diegese é memorial, logo, também construída. O diretor recusa assim um discurso direto, transparente, sobre os acontecimentos do enredo.
No entanto, Lee faz um movimento arriscado de submeter toda essa modernidade e autoconsciência a um buddy movie que também quer ter alguma densidade no trato com questões como a dos traumas de guerra e a das heranças desse conflito específico para as sociedades americana e vietnamita. Não dá tão certo. Como um filme sobre velhos amigos se reencontrando e viajando juntos, “Destacamento Blood” até funciona, apesar de algumas sobras que, se descartadas, tornariam a trama bem mais concisa: a presença excessiva do filho de um dos personagens principais (Jonathan Majors), figura bastante aleatória que só serve para criar algumas situações dramáticas genéricas e tomar um tempo precioso, e os três integrantes de uma ONG (Paul Walter Hauser, Jasper Pääkönen e Mélanie Thierry), que não têm realmente utilidade, apesar de também receberem destaque considerável.
Já no que concerne às discussões sobre a guerra e seus efeitos, “Destacamento Blood” obtém resultados mistos. Paul (Delroy Lindo), o personagem que concentra em si a maior parte dessas questões, é uma presença muito forte no filme. O ator está excelente. Mas Lee não consegue delinear bem o que quer com tal figura. Dizer que só uma experiência traumática como a da Guerra do Vietnã e uma sociedade adoecida como a americana poderiam produzir um homem negro racista e defensor de Donald Trump? Talvez, ainda que essa hipótese levante a questão do que dizer dos outros três bloods sobreviventes (Clarke Peters, Isiah Whitlock Jr. e Norm Lewis) – aliás, tão pouco desenvolvidos pelo filme em comparação com Paul. De toda forma, é muito poderosa a imagem desse veterano negro de punho cerrado e olhar extático, portando um boné da campanha de Trump.
Quanto à representação do Vietnã, ela começa simpática, aparentemente interessada nas complexidades socioeconômicas que hoje marcam esse país. Mas logo transita para a indiferença, seguida pela caricatura. O que são, afinal, os vilões surgidos no terceiro ato senão instrumentos de reprodução da mesma lógica presente nos filmes de ação sobre o tema, criticados no próprio “Destacamento Blood”? Através do confronto com esses personagens, os protagonistas encontram alguma redenção (mesmo na morte). O filme, como as sequências de “Rambo” e semelhantes, possibilita aos americanos uma espécie de vitória na Guerra do Vietnã.
Spike Lee sempre se pretendeu um cineasta popular, de grande alcance, mas essa tensão entre modernidade estética contestatória e impulso comunicacional nem sempre se resolve bem no seu cinema. Infelizmente, “Destacamento Blood” é um desses casos: há nele coisas muito boas, mas o todo, inflado e cansativo, não dá liga.