“Sem paz, sem vagina”. A pequena frase improvável de ouvir é o slogan das mulheres de Chi-raq, primeiro filme original dos estúdios da Amazon, de 2015, dirigido por Spike Lee. Caso a expressão soe exagerada ou improvável, ela é a liga da militância expressa no filme, cujo exagero por si só é a regra e toma a forma inesperada da sátira dramática do longa. O desejo é literal e o cerne vem de uma comédia teatral grega sobre uma greve de sexo feita por várias mulheres da Grécia a fim de colocar um fim à guerra dos homens. Aqui, o foco é o mesmo, mas mudamos para Chicago, Estados Unidos.
Lisístrata, o título original da peça, é nome da protagonista de Chi-Raq. Já o título do filme vai apelidar o causador do conflito, líder da gangue Espartanos, aspirante a rapper e namorado de Lisístrata. Seus inimigos, como não poderia ser diferente, são os Trojans (ou Tróianos), liderado por Cyclops (Wesley Nipes caolho). Spike Lee divide dois mundos dentro de um só, seja na narrativa ou na história em si, ele deixa bem claro o transporte histórico e o exagero retratado. Lisístrata segue seu destino e inspirada por uma outra greve de sexo que a mesma descobre no Google, começa uma revolução.
Os créditos inicias são tomados pela canção de Chi-Raq, letras que protestam sobre o controle das armas, a morte de inocentes e o esquecimento da cidade. Terminando, Lee começa seu recorte didático trazendo manchetes comparando o número de mortes entre os anos de 2001 e 2015, no Afeganistão, Iraque e Chicago, este último sendo maior. Aliás, Chi-Raq é na realidade localizado no sul de Chicago que mais parece uma zona de guerra por conta da disputa de gangues – o Raq vem de Iraque. As comparações não são à toa.
Não demora muito para a essência do filme aparecer e sermos surpreendidos por Samuel L. Jackson parodiando Dolemite e nos introduzindo à história. Quase como um show de stand-up, seu personagem chega dançando com uma vestimenta colorida, mas traz monólogos que ressaltam a problemática real do assunto retratado, clamando por salvação e um tratamento sério à questão da violência entre gangues.
O caso aqui é justamente esse: a sátira sendo usada na sua forma mais colorida e musical possível para falar de um subtexto real e dramático. A estética lembra filmes dos Irmãos Wayans, F. Gary Gray e John Singleton. A cruel realidade dos bairros fica de pano de fundo e muitas vezes as cenas por si só não obedecem a uma lógica temporal, focadas no diálogo e tema a ser mostrado, tendo tomadas de decisão em questão de uma cena apenas, sem resistência (não confundir com algo experimental). Lee atualiza o gênero e subverte o lugar comum ao mesmo tempo que nunca deixa de lado o humor caricatural e exagerado de certos personagens.
As autoridades, por exemplo, são o alvo principal do desenho irônico. O prefeito grita, se desespera, xinga e se revolta pelo fato da greve de sexo ter chegado até a sua esposa e as forças militares de Chi-raq são facilmente rendidas pelo grupo de mulheres quando o sargento é vendado montando em cima de um pequeno tanque achando que vai transar com Lisístrata. São momentos desconfortáveis, mas que no geral, compõem a tendência absurda da narrativa.
Não é somente na adaptação que o viés teatral caracteriza a obra, como também na própria encenação. Seja para chamar atenção para o filme, diálogo ou remontar o próprio aspecto teatral apenas, quase todas as falas são rimadas e ensaiadas como se cada personagem do grupo estivesse esperando seu momento. Há performances musicais e discursos voltados diretamente para câmera, uma plateia indefinida, recheados de palavras que possivelmente não veríamos sendo ditas se não fosse o aspecto teatral contido. Aliás, se a causa para as ações não são exageradas (violência, morte de crianças), as resoluções sim são a regra do absurdo.
Não dá para afirmar se a escolha da abordagem foi realizada por ser um produto do streaming, portanto, voltado para o público em geral. Fato é que a dramédia de Chi-Raq é a mais dividida possível. O diálogo usa do humor do filme para guiar e problematizar o comportamento machista e exaltar a revolta das mulheres. Chega a ser desconfortável cenas como homens lutando pelo desejo do sexo, no outro lado mulheres negando e no meio a polícia impedindo o conflito ou a imprensa noticiando. As próprias reuniões masculinas são dignas de desprezo exatamente pelo conteúdo e pela força da masculinidade que exigem em demonstrar, mas justamente seu impacto reside no estereótipo exacerbado dos personagens.
Já na causa das ações, reside o drama exagerado das dores de mães que perderam seus filhos e o comentário político sobre a sub-economia da periferia. Há espaço para uma mãe limpando o sangue da rua com a trilha sonora gritando em nossos ouvidos e o improvável sermão de cerca de 10 minutos de um padre que fala menos sobre Deus e mais sobre paz, amor e justiça, nomeando os responsáveis pela destruição do bairro: armas e políticos. A figura do padre é a mais questionadora pela sua simples existência: símbolo de poder no bairro, ele é o único personagem branco que recebe atenção dos moradores e luta pela igualdade com a força de um líder político. Chega a ser controverso as duas posições, mas reforça o poder da igreja em um lugar esquecido por qualquer lado político.
A sustentação da sátira não tira o teor da importância social em comentar a violência de gangues dentro do filme. Spike Lee já tinha feito dezenas de filmes e sempre abordando a temática racial de uma maneira única e original. Tudo isso não o faz largar a mão do seu ditadismo clássico, e aqui não significa um ponto negativo na abordagem. Pelo contrário, a intervenção do personagem de Samuel L. Jackson e as rimas do diálogo nos tiram da narrativa, fazendo pensar sobre o exagero da abordagem e abrindo espaço para o debate das consequências reais do filme.
Se a lógica satírica de Chi-Raq se encontra na forma que ele nos apresenta, é em Bamboozled – A Hora do Show que o absurdo reina justamente na sua história, com a crítica saindo da boca dos personagens e de suas ações. Nesse filme de 2000, o entretenimento é a questão e subverte-lo é o seu princípio. Situado na câmera de grua que carrega o personagem até a tela, Pierre Delacroix (Damon Wayans) explica feito um dicionário rebuscado o significado de sátira, e logo em seguida se apresenta para o público explicando ser um roteirista de televisão, em plena ascensão da internet. Ele chega atrasado em uma reunião e é repreendido pelo seu chefe, um estereótipo de Eminem que usa gírias das ruas, diz “nigga” sem problemas e clama conhecer a cultura negra melhor que Pierre; o único funcionário negro da empresa, fora a sua assistente, Sloan Hopkins e os guardas da empresa. Com a audiência caindo, a tarefa de Pierre é simples: criar um novo programa de comédia, que seja diferente de qualquer outro show negro que ele já tenha criado. Seu insight: um minstrel show do novo milênio, com direito a blackfaces e cenário de plantação de melancia. A prática vem dos espetáculos teatrais pós guerra civil americana, com show de variedades compostos por atores brancos com o rosto pintado de preto.
Bamboozled retrata os bastidores do entretenimento e como ela modifica a cultura negra a fim de conseguir audiência e tornar palatável a seu bel prazer. Em um diálogo entre Pierre e Dunwitty, este comenta as produções descartadas e todas falando sobre conflitos raciais dramáticos. Na elaboração do minstrel, o cenário dos subúrbios é descartado para uma plantação de melancia. Nada mais justo que unir essa crítica com o passado racista da televisão norte-americana, que somente aceitava os negros se fossem na imagem pintada dos brancos.
Os elementos para a sátira estão aí e o show deve continuar. O interessante aqui é a inversão da caracterização. Como em Chi-Raq, o humor consiste nos personagens brancos e a complexidade nos negros. Pierre, Sloan e os intérpretes principais da atração, Manray e Womack – que no show em questão fazem Mantan e Sleep ‘n Eat, referência a personagens estereotipados reais dos anos 30 – são os únicos que dialogam com profundidade, deixam suas intenções bem claras e questionam o status quo, enquanto o superior Dunwitty nos faz rir de desgosto pelas suas palavras, com quadros de personalidades negras pelo escritório e se divertindo genuinamente com a atração racista de Pierre.
Importante mencionar que em nenhum momento os envolvidos ficam contentes com o sucesso, a jornada de cada um começa com sucesso, mas cai na perdição justamente pelo conflito interno. Spike Lee demostra a intenção satírica do criador e a busca por um trabalho de Manray e Womack que antes sapateavam na rua por alguns trocados. Sloan acompanha a trajetória do show, mas sempre tentando resgatar a história do blackface, a fim de conscientizar seus colegas. Há ainda a participação de Mos Def e seu grupo de rap, representando a revolta da militância por conta da representação racista.
O contexto é o mais importante em Bamboozled, pois o absurdo que nasce do minstrel show, a aceitação da audiência com cara pintada na plateia, e pessoas brancas dizendo serem negras por esse fato tem sua causa na intenção de Pierre de comprovar o argumento de que a TV não quer negros com dignidade atuando, portanto cria-se uma sátira televisiva para criticar algo da própria marca. O poder fica mais acima então a situação nunca cai a favor dos nossos protagonistas.
Vem então o uso do blackface. Com episódios de séries tiradas do ar por conta de cenas do tipo, Bamboozled poderia ser facilmente questionado hoje em dia. Obviamente, a abordagem narrativa de Lee tira essa suposição. Como bem feito em Destacamento Blood, recortes de cenas reais de personagens negros estereotipados dos anos 40 surgem na tela compondo o pesadelo de Pierre, desde animações da Disney até os clássicos Tia Jemima e Tio Tom. É o imaginário racista da américa sendo transformado e reinventado por Lee. Não à toa, todas as cenas que acontecem fora do palco da TV são filmadas com um digital, quase sujo e amador, com cortes rápidos em uma cena; já o minstrel em si é o mais limpo possível para dar a aparência televisiva do real na nossa cara.
Abusando do poder da sátira e do absurdo que esse gênero pode entregar é com Chi-Raq e Bamboozled que Spike Lee brinca com nossa percepção do normal e exagera no conteúdo e na forma a fim de gerar a discussão e sair do lugar comum. A narrativa é transformadora e seu impacto é justamente em provocar o imaginário que é sustentado na realidade de uma condição esquecida, seja essa a guerra entre gangues provocada por uma política excludente ou um entretenimento racista que precisa ser lembrado.