– Bobby, eu nunca quis te envolver nisso tudo, me desculpe.
– Você não precisa se desculpar, eu nunca ouvi você ou o papai.
– Quer ouvir algo engraçado? Eu sentia um pouco de inveja de você por isso. Eu não tinha muita fé em mim mesmo. Eu simplesmente fazia o que o papai queria que eu fizesse. Quero dizer… Digo… Você é livre. De qualquer jeito, olha só. Eu nunca quis te meter nisso. Eu só… Talvez eu esteja dizendo isso porque não tenho dormido bem. Tenho tido pesadelos sobre o que aconteceu comigo.
O diálogo entre Bobby (Joaquin Phoenix) e Joe (Mark Wahlberg) é uma síntese perfeita tanto para a relação dos irmãos Grusinsky, como para um elemento familiar presente em todo o cinema de Gray, que sempre teve enorme interesse nessas relações (principalmente paternas). Praticamente todo o cinema de Gray é calcado na tragédia a partir do recorte familiar. Da inevitabilidade do fracasso em Fuga Para Odessa, filme de estreia do diretor americano, até Ad Astra: Rumo às Estrelas, ficção-científica na qual um astronauta (o Roy McBride de Brad Pitt) cruza a galáxia em busca de seu pai (Clifford, vivido por Tommy Lee Jones).
Em Os Donos da Noite, o gerente de uma boate (Bobby) é convocado por seu irmão (Joe) e pai, Burt (Robert Duvall), para ajudar a prender um traficante. Só há um problema: o traficante é sobrinho do dono da casa noturna onde Bobby trabalha. A El Caribe pertence à única figura paterna pela qual Bobby possui algum apreço direto. É o lugar onde Bobby foi acolhido pelo que escolheu ser, não pelo que esperavam dele. É o lugar lúdico, livre, onde Bobby não está à sombra do legado de seu pai, um dos mais respeitados policiais da cidade, e onde pode conquistar seu próprio futuro, ser o dono de seu próprio destino.
A relação humana que Gray constrói em Os Donos da Noite, portanto, é a de um homem com seu destino interrompido, sequestrado pelos laços familiares. O sujeito, que a vida inteira lutou para sair debaixo das asas de seu pai, se vê obrigado a retornar para proteger a família do conflito entre a polícia e o tráfico. Mas Gray, acertadamente, jamais se debruça sobre a trama criminal para desenvolver sua narrativa. Como em quase todo filme do cineasta, o gênero (ou o subgênero) estão ali apenas como uma capa que permite ao diretor trabalhar suas ideias.
O que dá o tom trágico a Os Donos da Noite é perceber como, no processo de reaproximação de sua família, Bobby perde tudo pelo que prezava. É uma escolha muito ousada, mas igualmente brilhante que Amada Juarez (Eva Mendes), a namorada do protagonista, simplesmente desapareça do filme, em vez de partir diretamente após uma cena conflituosa. Amada percebe que seu companheiro está sendo sugado pelo conflito familiar, desde a primeira vez em que ele a afasta (ao decidir ir sozinho para o hospital após o irmão ser baleado), até a vez em que, definitivamente, a exclui de sua vida (quando fecha a porta do hotel na cena que antecede o juramento que faz à polícia). Não por acaso, Gray faz as duas cenas referenciando diretamente O Poderoso Chefão, nos momentos em que Michael Corleone exclui Kay da cabine telefônica e, ao fim do filme, fechando a porta enquanto faz o juramento como novo chefe da família.
O fato desse afastamento ser brusco e silencioso, de forma que o espectador menos atento sequer percebe o desaparecimento de Amada até ela de fato já ter saído do filme, evidencia como Bobby, por estar cego pelo ódio, sequer percebe o que está perdendo enquanto embarca na cruzada por vingança. É uma jornada que custa não só quem ele ama, mas quem ele é e queria ser. O personagem que sonhava em ser gerente de sua própria boate, dono de sua vida, acaba por se tornar um servo de uma instituição e de um legado.
Para fortalecer e embasar a tragédia da jornada de Bobby, o uso de Joe na narrativa é preciso. Gray constrói um irmão mais velho que, diferente do protagonista, sempre seguiu o caminho decidido por seu pai, e começa a notar as consequências disso ao longo do filme. Mas, apesar disso, Gray recusa também construir em Burt um pai vilanesco, unidimensional. Quando um de seus filhos é baleado e Burt está em uma academia de boxe, ao perceber a chegada dos policiais que trazem a notícia, ele não demonstra preocupação somente com Joe, e pergunta qual dos dois filhos sofreu um atentado. À sua maneira, Burt é um pai que ama Bobby, mesmo que seu amor não tenha como frutos uma relação saudável, mas o contrário.
A tragédia fica ainda maior por percebermos que ela acontece sem que os personagens a percebam, eles só se dão conta das condições nas quais estão quando parece já ser tarde demais. Para Joe, a violência e a experiência de quase-morte parecem tê-lo traumatizado para sempre – vide o ataque de pânico que o personagem tem durante o clímax do filme –, enquanto para Bobby, essa consciência só vem no exato último plano do filme, quando ele percebe ter aberto mão de tudo que amava para, literalmente, se transformar em uma sombra do próprio pai enquanto sua vida posterior, simbolizada pela imagem de Amada, passa a ser apenas uma ilusão, um fragmento de imagem perdido no tempo.
Ainda no começo do filme, quando Bobby e Amada vão visitar Joe e Burt em uma cerimônia do departamento de polícia, Bobby brinca que um dia poderia se tornar um policial. Naquele ponto do filme, isso seria simplesmente o pior pesadelo do personagem, que se concretiza na conclusão da obra. Ao abrir mão de tudo que amava em sua cruzada pela vingança, Bobby se tornou um mero reflexo do fantasma que o perseguiu por toda sua vida. O plano final, com os dois irmãos dizendo que se amam à frente de um fundo totalmente preto, é um dos mais potentes da carreira de Gray, e mostra como ambos foram consumidos pelo legado do pai ao ponto de não haver mais escapatória sem traumas. A tragédia de Bobby e Joe não é meramente a violência ou as perdas no caminho, mas o fato de que não puderam e provavelmente jamais conseguirão sair da sombra do próprio pai, mesmo que este já esteja morto.