Se em Deixe a Luz do Sol Entrar a protagonista vivida por Juliette Binoche busca a independência emocional por meio do sexo casual, Desejo e Obsessão já mostra como o desejo pode subverter a racionalidade e a civilidade e transformar pessoas em seres puramente instintivos, que mal diferenciam a dor do prazer e mergulham sem muita lógica em suas experiências. Usar a fisicalidade como instrumento narrativo para além da mera movimentação cênica dos atores é algo característico do cinema de Claire Denis. Dos filmes que vi, tal interesse já se fazia presente desde Bom Trabalho, de 1999. Em High Life, Denis volta a fazer um filme sobre corpos como instrumentos de poder de seus próprios personagens, mas com uma roupagem de ficção científica à la Tarkovski e tão politizado quanto Bom Trabalho.
O filme acompanha uma pequena prisão espacial, para onde criminosos são enviados para cumprir pena cuidando da estação. Denis, porém, não cai na armadilha de superexpor essa veia política do filme, e utiliza mais como um dispositivo que justifica e potencializa o drama de seu filme. High Life é uma história de personagens que, perturbados por seu isolamento e inconformados com seu destino e com a impossibilidade de alterá-lo, vêem no uso de seus corpos de forma quase instintiva o único caminho para se sentirem vivos. Em High Life, a reconquista do autonomia do corpo é a única forma de manifestar-se contra a desumanização promovida por um sistema punitivista, que utiliza o trabalho como justificativa para tratar indivíduos apenas como uma máquina em uma linha de montagem.
High Life faz bom uso dessa situação de perda de poder sobre sua própria existência, com seus personagens condenados ao esquecimento fora do próprio planeta natal. Antes de inserir o subtexto político, Denis tem o cuidado de estabelecer uma interessante relação entre os personagens e o espaço, para apenas depois “politizar” a narrativa. São introduzidos todos os signos que sedimentam a existência humana na sociedade. A família, a nossa relação com a natureza e com o divino, e perpassando tudo isso, o trabalho. Porque, sim, Denis está obviamente criticando a desumanização do sistema carcerário vigente na sociedade ocidental, mas também está relacionando esse tema diretamente com o trabalho e a desumanização do trabalhador.
No filme, o indivíduo só tem a permissão de existir quando trabalha. Monte (Robert Pattinson, muito bem, como de costume) começa o filme trabalhando e continua exercendo seu ofício enquanto cuida de sua filha recém-nascida. Só há tempo para descansar quando realiza os últimos protocolos da nave e ganha, de seu empregador, a permissão para continuar existindo por mais 24 horas. Aliando-se a essa ideia de trabalho tóxico e desumanizador, há toda a construção dos cenários do filme. High Life começa com um belo jardim e um astronauta em órbita, mas logo troca esse cenário para uma nave sufocante, tanto pela razão de aspecto opressiva do 1.66:1, quanto pela sobrecarga de cores e desfoque, que tornam o cenário poluído, angustiante.
Com essas ideias estabelecidas, Denis parte então para o que mais lhe interessa: a fisicalidade. As interações de Monte com os demais personagens costumeiramente se resumem a flertes, beijos ou agressões. Os presidiários da nave são desumanizados pelo trabalho ao ponto de terem seus instintos mais básicos de sobrevivência e reprodução como único lembrete de que são, afinal, pessoas. Os corpos são constantemente filmados como únicos objetos recebendo uma luz “natural” no enquadramento justamente por serem a única coisa real e tangível que ainda existe na vida daqueles personagens.
Com exceção dessas cenas de trocas de carícias e agressões, o único resquício de humanidade que os personagens ainda podem vislumbrar está em distantes memórias, memórias essas que são sempre inseridas em cortes um tanto quanto brutos, sujos, criando uma sensação de que são fragmentos da existência daqueles personagens que estão prestes a desaparecer. Como um corpo que, em dado momento do filme, simplesmente desaparece deitado no campo de trabalho. Em High Life, sobreviver é a única alternativa para o indivíduo que têm sua existência assegurada apenas enquanto for produtivo. É, ao mesmo tempo, a reconstrução simbólica do papel do trabalhador no capitalismo, mas também a desconstrução desse sistema como solução para a humanidade. É o apontamento de que uma fuga ou uma revolução são mais do que importantes, são necessários para a sobrevivência.