“Uma Vida Pequena” e Nova York como destino

“Uma Vida Pequena” e Nova York como destino

Hanya Yanagihara desenha a utopia da geração Z em romance premiado

Beatriz Pôssa - 7 de agosto de 2020

O elemento mais potente e talvez mais representativo de Uma Vida Pequena (2015) é o esmiuçamento dos fortes laços formados nas amizades masculinas. Hanya Yanagihara leva ao limite a busca incansável pela sensação de pertencimento, e questiona o quão longe uma pessoa pode ir para conservar a camaradagem e o sentimento absoluto de invencibilidade comum aos jovens. Há na caracterização de seus personagens – Jude, Willem, JB e Malcolm; o advogado, o ator, o artista plástico e o arquiteto – a consciência do envelhecimento, a certeza vertiginosa das dores da vida adulta e da morte. Acompanhamos ao longo do romance o crescimento dos quatro amigos e as diferentes fases de suas amizades, quando seus laços estão mais estreitos ou afrouxados, e suas vidas são regidas pelos graus de aproximação em relação aos outros. Mesmo que o tempo seja percebido de maneira tão brutal durante o livro – são cerca de 40 anos de suas vidas encapsulados de maneira não-linear -, Yanagihara quase não pontua elementos que confirmem em que época se passa a história. A autora constrói a cidade de Nova York em suspensão, uma ilha flutuando pelos oceanos do tempo. 

Temos alguns indícios tecnológicos: o convívio com computadores e celulares, a realidade da constante troca de e-mails e mensagens de texto, as discussões avançadas sobre identidade. Talvez a única certeza sobre o contexto histórico seja a do Terceiro Milênio, uma Nova York evocada em discos como Is This It? e Turn on the Bright Lights, em que são elencados os últimos dos millennials e a geração Z. É uma cidade com seu horizonte eternamente deformado atravessando o corpo dos jovens adultos incertos que só anseiam pela aniquilação das certezas absolutas e do acúmulo de capital.

O que Yanagihara propõe é mapear Nova York, cidade em que vive, através dos movimentos desse grupo específico de personagens. Podemos não acessar o momento exato da história nova-iorquina, mas sabemos que Jude e Willem dividiram um apartamento em Lispenard Street e que posteriormente Jude se muda para Greene Street. Sabemos que com frequência todos os amigos se encontram em um restaurante tailandês em Chinatown, e também que JB expõe suas pinturas em uma galeria de arte em Norfolk Street. O espaço é parte do grupo de amigos, um organismo vivo e em constante transformação. Nova York é o cenário em que os personagens se sentem confortáveis para construir novas vidas e derrubar o passado, onde caminham por quilômetros para fugir, e todas as suas alegrias e medos se cruzam por Manhattan, Brooklyn, Chinatown. Essa Nova York atemporal, ou melhor, transtemporal; é ainda incomum ao nosso ano de 2020, e poderíamos supor que Yanagihara ambienta o romance em um futuro próximo, em que discussões pós-identitárias dominam todas as rodas de conversa – Malcolm se descreve como “pós-negro” e JB define Jude como “pós-homem” – e a fluidez de expressões da sexualidade, da orientação sexual, da possibilidade de relacionamentos abertos ou sem relações sexuais, é gritante, tratada de forma natural e compreendida organicamente não só entre o grupo, mas também em seus próprios núcleos familiares, seus escritórios de advocacia e suas capas de revista. Não há sequer um choque geracional – os personagens alguns anos mais velhos, como os intelectuais Harold e Julia, amigos da pós-graduação de Jude, obedecem a mesma lógica agregadora e sensível. Ambos são familiarizados com o trauma e conhecem as infinitas possibilidades de novas estruturas sociais. O organismo nova-iorquino é adaptável, não estranha a avalanche de personagens LGBTs, não-brancos e imigrantes no romance – a cidade é a utopia muito particular da geração Z. Geração que, segundo Yanagihara, apreende muito mais facilmente temas ignorados pelas gerações anteriores: depressão, automutilação, ansiedade, abuso sexual, tratamentos psicoterápicos. Tudo isso é ponto central de Uma Vida Pequena, que cria um mundo em que existe uma compreensão quase instantânea da dor, consequentemente reformulando o ambiente para confortar os corpos que se sentirem inadequados.

Apesar de, em um primeiro momento, Yanagihara nos apresentar quatro protagonistas, fica claro que todos os personagens da história gravitam em torno do advogado do grupo, Jude St. Francis, e dos mistérios que rondam sua história e saúde física. Logo no início do romance existem indícios da gravidade de seu passado traumático, e a partir da metade da história conhecemos a fundo as violências e os abusos que Jude sofreu desde a primeira infância até o fim da adolescência. Yanagihara constrói em cada capítulo diferentes entradas à leitura da vida de Jude, nos oferecendo um leque de análises sobre o estado de sua psique. Os capítulos do ponto de vista de Willem, seu amigo mais próximo e para quem Jude mais se abriu, são marcados pelo amor fraterno e incondicional que sente por Jude, e o enxergamos justaposto ao irmão já falecido de Willem que, assim como Jude, era deficiente físico. Nos capítulos de Harold, escrito de maneira epistolar que apenas ao fim entendemos inteiramente seu propósito, vemos Jude por seus olhos envelhecidos, ora seu orientando e protegido, ora a encarnação do filho que faleceu quando ainda era uma criança, e sua relação se desenvolve de maneira tão intensa e amorosa que leva ao momento mais elementar da primeira parte do romance – a adoção de Jude. Nas chaves de leitura de Willem e Harold, vemos um Jude alheio a ele mesmo, associado a pessoas que já faleceram, e tomamos conhecimento da importância que Jude tem para os dois não só por ser quem é, mas pelos papéis que inconscientemente ele desempenha para a (re)construção das figuras paternas arquetípicas em ambos, especialmente no caso de Harold.

Mas são os capítulos que passeiam pela cabeça do próprio Jude em que a escrita de Yanagihara mais se potencializa – é justamente na tensão entre o Jude-criança e o Jude-adulto que enxergamos a projeção avassaladora das sombras que o atormentam. É esse o momento em que conhecemos mais sobre o passado que incita a curiosidade de todos os personagens de Uma Vida Pequena, sobre a infância de Jude no monastério, sua adolescência no orfanato e quando não tinha onde morar. Há um movimento de avanço e retardo temporal por todo o romance, compondo apenas de elipses as vidas dos personagens, e é justamente a profundidade das feridas de Jude que define essa forma narrativa. A prosa de Yanagihara funciona em uma chave praticamente freudiana de acesso ao trauma e às memórias recalcadas – são momentos aleatórios que engatilham uma digressão dolorosa, transportando ao passado a consciência de Jude e nossa atenção. Esse dispositivo é contínuo: uma ferida se abre para uma nova narrativa, que abre uma nova ferida, ad eternum. Essa articulação garante a sensação de um eterno tempo presente aos leitores, em que Jude-criança está circunscrito em Jude-adulto, e vice-versa. Apesar do zigue-zague temporal e a descrição de momentos traumáticos, a autora nos poupa em certos casos. Enxergamos os abusos sofridos por Jude como ele próprio enxergava, já que nessas situações dizia se deslocar do próprio corpo para se manter vivo; como se assistisse do alto, por exemplo, enquanto Irmão Luke, seu algoz dos tempos do monastério, o obrigava a se prostituir. Jude se torna um espectador silencioso e distante ao ser confrontado por suas memórias, e nós, leitores, acompanhamos a fluidez dos saltos que dá pelas constelações de imagens de horror do seu inconsciente.

Para além da dimensão do trauma, encontramos em Uma Vida Pequena a busca pela imortalidade. Willem, JB e Malcolm encontram nesse grupo de amigos a possibilidade de alongar o quanto conseguirem as suas juventudes, se deliciando na eterna molecagem da vida universitária. Jude, por sua vez, se beneficia dessa relação porque enxerga nos amigos a chance de esquecer o seu passado, a oportunidade de experimentar pela primeira vez a inocência que lhe foi arrancada. Nesse ponto, os personagens de Yanagihara se assemelham muito a Holden Caulfield, do também nova-iorquino O Apanhador no Campo de Centeio (1951), de J.D. Salinger, a Bíblia de múltiplas gerações de adolescentes angustiados e alienados que não são capazes de nomear o que sentem. Parece que observamos duas ramificações distintas cuja raiz é Holden – por um lado temos Willem, que se coloca à beira do abismo com objetivo único de apanhar aqueles que estão prestes a cair, disposto a bagunçar sua vida para ajudar o próximo. Do outro lado, uso como exemplo o episódio em que Holden narra andar pela Quinta Avenida e ter a consciência gritante que não irá conseguir chegar ao outro lado, como se estivesse caindo. Ao chegar ao fim de um quarteirão, Holden chama por Allie, seu irmão falecido, lhe implorando “Allie, não me deixe desaparecer. Allie, não me deixe desaparecer”, e o agradece ao conseguir chegar ao outro lado da rua, só para a sensação recomeçar. É nesse aspecto que enxergamos Jude, que reconhece e insiste em todas as suas limitações e chama por ajuda em silêncio para o nada, em um ciclo de desamparo, acorrentado às cicatrizes no seu corpo. Em Salinger, a máxima de Holden é a de não contar nada a ninguém, pois ao compartilhar um pedaço de si você imediatamente começa a sentir a falta da pessoa com quem se abriu. Jude entende seus problemas insolucionáveis, seus amigos não podem ter conhecimento de todas as coisas pelas quais passou pois ele supõe que isso mudaria o que pensam dele, fariam que o conhecessem “de verdade”, e a sua verdade é irreversivelmente imunda, é onde se inicia e se encerra. Por isso, passa praticamente a vida toda sem contar nada sobre si, seja a um amigo ou terapeuta. Quando Jude narra buscar por sanguessugas na infância para “purificar” seu sangue, descreve se sentir “tão incessantemente sujo, tão maculado, como se por dentro fosse um prédio caindo aos pedaços”. A sensação de solidão e inadequação na construção dos personagens de Yanagihara se aproxima muito do Holden de Salinger – temos pessoas à deriva nas ruas de Nova York, em busca de alguém com quem conversar, mas incapazes de verbalizar a dor.

Apesar da angústia que nos leva a compreender o título do livro, Uma Vida Pequena é recheado de momentos agridoces e, em certa medida, esperançosos. Temos um grupo de três artistas e um advogado assolado pelo próprio passado, que conseguem, de modos diferentes, sucesso profissional, amizades duradouras – são pessoas que constroem impérios em uma cidade que amam e que os ama de volta. A certa altura, quando Willem está dividindo o apartamento com Jude em Greene Street e atuando em uma adaptação da Odisseia, o ator comenta sobre uma discussão que tinha com uma ex-namorada a respeito dos melhores trechos do poema. Paralelamente a essa lembrança, Willem tem uma epifania sobre a sua vida e o que sente por Jude, e a seguinte cena se dá:

“Foi à cozinha e preparou café, sussurrando os versos para si mesmo, os versos em que pensava sempre que voltava para casa, sempre que voltava para Greene Street após um longo período distante: 

 

‘E me diga isto: preciso ter absoluta certeza. Este lugar a que cheguei, seria realmente Ítaca?” 

 

E, ao seu redor, o apartamento se encheu de luz.” 

Com suas duras e dolorosas páginas, em que somos confrontados constantemente pelo mal e a cólera, e tateamos a esmo por soluções, Yanagihara busca provar em Uma Vida Pequena que existe vida dentro da própria vida, e se encontramos em sua Nova York a mínima chance de redenção para esses personagens assombrados então a cidade deve ser mesmo a Ítaca que Ulisses tanto lutou para reencontrar.

Topo ▲