Assistindo a Dor dos Outros

Assistindo a Dor dos Outros

A tela do computador como receptáculo da nossa consciência, o diálogo dos corpos e sua função corrompida na cibercultura.

Egberto Nunes - 25 de agosto de 2020

O que acontece com a gente após assistir os filmes que assistimos? Chloé Galibert-lâiné documenta esse processo íntimo e pessoal no curta Assistindo a Dor dos Outros; onde ela procura entender sua obsessão e repulsa inicial ao filme de Penny Lane. O formato é do cinema desktop, das telas do computador, capturando os programas de edição que a autora francesa usa para desmontar seu filme-objeto e as gravações de entrevistas com a diretora de A Dor do Outros. Chloé descontrói não somente sua visão de mundo e relação com o estudado, mas o próprio formato também é desmontado.

O filme em questão que Chloé investiga é feito através de recortes de vídeos do Youtube sobre pessoas que tem uma estranha doença, a síndrome de Morgellons. Essa condição é tida como fantasiosa pelos médicos, e os enfermos dizem possuir vermes dentro da pele, pequenas manchas e ferimentos. As personagens do filme vivem dos vlogs que fazem mostrando seu corpo e aparência corrompida pela doença, tentando provar seu ponto.

O diálogo construído é justamente das imagens e disputas de narrativas: em quem confiar? No médico com seu currículo científico gabaritado ou no paciente com a única prova sendo sua história e seu íntimo corpo sendo mostrado nas telas do Youtube. Nessa linha, há uma ruptura da cibercultura dos corpos e algoritmos proposto por Chlóe, a questão de que os enfermos agem fora da reta da exposição de mulheres, negando os famosos tutorias de maquiagem e conversas sobre beleza, para justamente circular o que ninguém gostaria de mostrar.

No processo da curta documentário ensaio, ela abusa de traduzir seus próprios pensamentos e sensações em áudio, interrompendo a gravação e rascunhando os acontecimentos. O consciente de Chloé é trazido pela tela e o controle do vídeo é ajustado pelas pausas abruptas e pelas edições simples, mas que desmontam a obra e geram outro sentido. A imersão se sustenta a partir desses dispositivos que se refazem caminhos e ideias no decorrer de 30 minutos do curta. Toda essa montagem é bastante fascinante na medida em que ela vai conhecendo e descobrindo mais sobre o filme e os envolvidos. Somente com a voz do Google tradutor, ela reconstrói o diálogo entre as personagens do filme com ela mesma, deixando um significado completamente diferente para quem está acompanhando tanto a transformação do objeto analisado quanto a própria visão de Chlóe.

O que tem a forma de um diário sendo lembrado é transformado no clímax da descoberta da identificação intensiva com a doença das personagens e logo em seguida, Chlóe questiona todas as partes envolvidas: ela mesma, o próprio filme e a intenção das personagens e da diretora.  Se no início o estudo é sobre a obra, vemos que ela vai atrás da relação dela mesma com a obra e de nós mesmos com o mundo das telas. Como um ensaio, ela tece suas críticas e visões sobre o filme e faz relações com a intensa exposição das personagens nas mídias e nossa relação com a mesma. O que vem de uma crítica, se transforma num diagnóstico e num ensaio sobre a cibercultura e os corpos expostos.

O emaranhado de reflexões entrega um mundo de personagens que podem facilmente ter sido montados e atuados, mas ao tentarem provar sua própria aparência, produzem um impacto na documentarista tão ímpar que entrega os registros de Assistindo a Dor dos Outros, estes pertencidos unicamente a tela do notebook, receptáculo da consciência transformadora de Chlóe e suas ideias.


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