Todos os Mortos

Todos os Mortos

O passado a serviço do presente

Wallace Andrioli - 20 de setembro de 2020

Há em Todos os Mortos, de Caetano Gotardo e Marco Dutra, um esforço visível para marcar as continuidades entre passado e presente na história do Brasil. Dividido em capítulos que se passam em datas comemorativas (o Dia da Independência, o Natal e o Carnaval), o enredo se desenrola entre 1899 e 1900. Como lembra uma personagem, apenas onze anos depois da abolição da escravidão e dez da proclamação da República. Esse é um filme atravessado tanto pelo saudosismo dos privilegiados por um tempo de maior poder, mesmo que o presente ainda seja caracterizado pela permanência de velhas relações de dominação, quanto pela frustração dos explorados com as limitações das transformações realizadas. “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”, já dizia um personagem de O Leopardo (1963).

O grande problema de Todos os Mortos é tornar literal, na sua diegese, a vinculação intertemporal entre o momento em que se passa a história e o Brasil do século XXI. Uma representação rigorosa e crítica do contexto pós-abolição pode ser suficientemente brutal inclusive para o espectador contemporâneo criar pontes com o presente, mas Gotardo e Dutra apostam na explicitação por meio do anacronismo: o som de um helicóptero que invade uma conversa entre dois personagens, a paisagem urbana da São Paulo atual que por vezes irrompe no quadro, gritando a mensagem almejada. O filme não acredita totalmente na força dramática e política desse momento histórico. Para os diretores, o passado está exclusivamente a serviço do presente.

Mas há elementos que tornam Todos os Mortos, no mínimo, interessante. É admirável a construção inicial cuidadosa, que apresenta gradualmente os personagens e seus papeis no drama a ser encenado – ainda que esse drama posteriormente se dilua nessa vontade excessiva de falar com o hoje e acabe não avançando muito. Também são bons, como de costume nos filmes dos diretores, os momentos musicais. Ainda que não haja nenhuma cantoria realmente memorável, como há em O Que Se Move (de Gotardo) e em As Boas Maneiras (de Dutra com Juliana Rojas), ao menos essas cenas abrem espaço para uma bem filmada reconexão de alguns personagens com sua ancestralidade.

Mas é mesmo nas figuras das três senhoras brancas (uma mãe e duas filhas) que se encontra o ponto nodal de Todos os Mortos. Essas mulheres concentram em si e nos espaços pelos quais circulam uma forte nostalgia da escravidão, nunca manifesta nesses termos, mas no saudosismo de um passado edulcorado na fazenda (que já não pertence à sua família). Há nesse sentido um esboço de semelhança com o magnífico Tabu (2012), de Miguel Gomes, mas que infelizmente não avança.

Por fim, é muito boa a forma como, através dessas três personagens, a tensão social do presente vai se transmutando em códigos do cinema de horror, tão caros especialmente a Marco Dutra. Há de se lamentar, no entanto, que o filme não tope enveredar realmente por esse caminho de gênero, preferindo permanecer numa lógica da insinuação que acaba dizendo bem menos do que poderia sobre a história do país.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para o 48ª Festival de Cinema de Gramado. Para ir até a página principal de nossa cobertura, clique aqui.
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