Alguns aspectos destacam-se na obra do cineasta e pesquisador paulistano Carlos Adriano, detentor de uma filmografia extremamente particular no que é relativo ao cinema brasileiro.
Em primeiro lugar, a surpreendente criatividade no uso de uma quantidade massiva das imagens de arquivo em parte de seus projetos, sobretudo em seu filme mais famoso, o curta-metragem “A Voz e o Vazio: A Vez de Vassourinha” (1998). O caráter experimental na linguagem de seus projetos, por vezes sintética quando se considera que estes são realizados majoritariamente no curta-metragem, marca não apenas “Vassourinha”, como também a série “Sem Título” e obras adjacentes. Há também o espírito da elegia, homenagem em determinados filmes: seja ao precocemente falecido sambista Vassourinha, ao pesquisador Bernardo Vorobow, ao crítico Paulo Emílo Salles Gomes ou a outras figuras que ocupam um lugar de importância dentro do universo mental de Adriano, e cuja importância é estendida a seu universo fílmico, por consequência.
“Santos Dumont: Pré-Cineasta?”, longa-metragem de 2010 que é reexibido em 2020 pelo É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, possui todas essas características que dão a tônica ao bojo fílmico do trabalho de Carlos Adriano, e destaca-se por incorporar a academia e a historiografia não apenas do cinema, como da ciência como um todo, dentro do escopo abrangido pelo filme.
Partindo, em temática, de “O Mutoscópio Explica a Invenção do Pensamento de Santos Dumont: Cinema Experimental de Reapropriação de Arquivo em Forma Digital”, tese de doutorado do cineasta, o longa (como sugerido desde seu próprio título, não por acaso marcado por uma interrogação que propõe uma reflexão ao invés de uma afirmação assertiva) investiga o papel do cientista brasileiro Alberto Santos Dumont enquanto representante do pioneirismo não apenas da aviação, como também do dispositivo cinematográfico. Em termos de imagem, o que ocorre é não apenas essa reapropriação das imagens de arquivo no digital por meio de uma linguagem experimental, como sugerido pelo título da tese, como também a mescla com uma bateria de entrevistas com pesquisadores do cinema (Ismail Xavier destaca-se no conjunto), da história e da figura de Santos Dumont em específico.
A presença de tais entrevistas, que a princípio podem fazer o longa perigar ser o trabalho mais tradicional de Adriano no que se refere a linguagem, é trabalhada na montagem de maneira a não descompassar o ritmo do filme (que em duração, para um longa-metragem, possui uma minutagem enxuta; pouco mais de uma hora). A (des)coloração desses clipes em um preto-e-branco digital é apropriada por Adriano enquanto um aspecto estético a parte. A imagem conscientemente digital, conscientemente contemporânea, é filtrada da mesma maneira que as imagens de arquivo variadas que aparecem durante a projeção. Seus esforços não estão, no entanto, em emular uma imagem realizada no final do século XIX ou no início do século XX. Fotografia, figurino, ambientação e discurso não trabalham nesse sentido, são assumida e irremediavelmente situados no século XXI. Trata-se, afinal, de mais um dos elementos de experimentação que fazem parte do filme e da obra de Carlos Adriano como um todo.
Sendo Santos Dumont o objeto de estudo do filme e tópico das entrevistas, não é ele, no entanto, a figura presente em “Pré-Cineasta?” a ser revisitada em tom de elegia, como Vassourinha no supracitado curta que leva seu nome. O inventor é objeto de uma revisão crítica; em determinado momento de uma entrevista é inclusive alertado ao espectador que deve se ter o pragmatismo de não vê-lo enquanto um visionário irretocável. Quem está mais perto de ser homenageado aqui, na verdade, é o anteriormente mencionado Bernardo Vorobow, falecido em 2009 e que trabalhara com o cineasta em projetos que antecederam o longa. Aqui a presença de Vorobow é inserida através de clipes que o mostram manuseando uma câmera digital.
Para além do componente afetivo, não há nada de gratuito nessa homenagem; ela trabalha em pleno conjunto com os demais propósitos do filme: esse jogo de intercalação, mistura, sobreposição e interferência do antigo ao novo, do arquivo com o recém-gravado, da película com o digital. Toda a montagem do filme, da sequência dos planos à inserção dos letreiros e cartelas, trabalha nesse sentido.
Carlos Adriano pode ser indicado como um dos realizadores brasileiros que, ao surgir no final da década de 1980, melhor entende e usa a seu favor a transição do analógico para o digital. Suas realizações no presente século compreendem, estudam e inovam as possibilidades do digital no cinema brasileiro. “Santos Dumont: Pré-Cineasta?”, além de ocupar um lugar único em sua obra, também funciona como atestado destas qualidades do cineasta.