Letra Maiúscula

Letra Maiúscula

Reconstituição de um crime político

Wallace Andrioli - 14 de outubro de 2020

O amálgama proposto por Radu Jude em Letra Maiúscula não é tão simples quanto pode parecer inicialmente. A narrativa é formada pela alternância de imagens de duas naturezas, para reconstruir um caso de repressão política durante o período comunista na Romênia: cenas da TV estatal, que vão desde propaganda personalista mais escancarada de Nicolae Ceausescu até reportagens prosaicas, reveladoras do cotidiano no país (mas também carregadas da ideologia então vigente); e a encenação de momentos da história do adolescente Mugur Calinescu, preso e provavelmente assassinado pela Securitate (a polícia secreta do regime comunista romeno) por escrever frases de protesto nas paredes de Bucareste.

A questão é que essa encenação se dá de forma bastante antinaturalista, com os atores recitando seus textos num palco com cenografia estilizada, frequentemente olhando diretamente para a câmera, quase totalmente despidos de maiores emoções. A escolha de Jude por esse caminho não é aleatória, claro, já que as falas dos personagens reproduzem documentos da Securitate (relatórios oficiais e transcrições de escutas clandestinas): é como se o diretor fizesse encarnar nos atores o burocratismo característico da opressão comunista no leste europeu e a supressão da espontaneidade no cotidiano de uma população constantemente amedrontada.

Alguns filmes da região, inclusive da própria Romênia, já tiveram êxito em encenar de forma naturalista esse período no que ele tinha de sufocante e limitador das vontades individuais – por exemplo: A Morte do Sr. Lazarescu (2005), de Cristi Puiu, e 4 Dias, 3 Semanas e 2 Dias (2007), de Christian Mungiu. Jude evita se aproximar desses seus contemporâneos, optando por um olhar para o passado como necessariamente construção, fragmento, impossível de ser representado numa narrativa ficcional coesa, encerrada em si mesma. É compreensível, mas as cenas encenadas de Letra Maiúscula, dramaticamente esvaziadas, acabam empalidecendo no contraponto com as imagens televisivas, dotadas de uma força impressionante.

É que essas últimas têm a proeza de carregar ao mesmo tempo um componente ridículo, característico não só da propaganda política em ditaduras como da própria televisão (também em seu formato comercial), e uma capacidade de apresentar um cotidiano dinâmico sob um regime bastante fechado, frequentemente representado no Ocidente como caricatura grotesca. São imagens que não só contextualizam e comentam o enredo principal, da perseguição a Mugur Calinescu, mas também se sustentam sozinhas, constituintes de uma espécie de versão da Romênia comunista de Um Dia na Vida (2010), de Eduardo Coutinho. Além disso, mesmo controladas, elas indiciam problemas econômicos que o país enfrentava no início da década de 1980 e que Mugur Calinescu simplesmente denunciou abertamente.

Ainda assim, Letra Maiúscula alcança seu objetivo de crítica política desoladora, especialmente ao revelar, no epílogo, o destino terrível do jovem Mugur Calinescu. Os relatos de seu provável envenenamento gradual pela Securitate são impactantes mesmo no formato desdramatizado proposto por Jude, até pela natureza ao mesmo tempo patética e aterradora da cena em que os policiais (interpretados por atores) negam o crime. E o encerramento, com fotografias das mensagens escritas pelo rapaz, é absolutamente devastador, por contrapor a banalidade de um gesto à brutalidade fatal da resposta do Estado.


Esse texto faz parte de nossa cobertura para a edição de 2020 do Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba. Para ir até a página principal de nossa cobertura, clique aqui.
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