“Alice Júnior”, de Gil Baroni, chega às plataformas digitais já como um filme premiado após passagens por festivais de cinema ao longo de 2019. Se por um lado isso pode soar inusitado, tendo em vista que produções voltadas para o público jovem (e que buscam retratar o universo do mesmo) em geral possuem como chamariz maior o apelo comercial ao invés do prestígio oficial, por outro isso se torna compreensível quando se sopesa a maneira como o longa retrata pautas sociais com a fluidez e a leveza que são empregadas enquanto linguagem.
Ao encontrar em sua protagonista uma jovem recifense de classe média alta que possui uma base de fãs na internet graças a sua participação em um concurso de modelos e aos vídeos que grava para o YouTube, “Alice Júnior”, em um primeiro momento, se utiliza do digital enquanto uma maneira para colocar em telas signos imagéticos que dialoguem com a realidade imediata da personagem. Efeitos inseridos em tela simulam interações em redes sociais, alcance do sinal Wi-Fi e execução e compartilhamento de selfies. Até a edição dos vídeos de Alice é simulada pelo filme, com direito a inserções de clipes da cantora Gretchen, que, como se sabe, atravessou os últimos anos em um processo de ressignificação de sua imagem pelas gerações mais novas na internet.
O que Baroni faz é ter nessas intervenções um pretexto para trabalhar ao longo do filme uma espécie de estética publicitária, tão comum ao cinema brasileiro desde o período da chamada “retomada”, a partir de meados dos anos 1990, quando o cinema brasileiro voltou a maiores números de produção após um período de escassez. Profissionais da publicidade migraram para o cinema (alguns atingindo êxito em crítica e público, como Fernando Meirelles com seu “Cidade de Deus”) e imprimiram nas produções dessa nova fase uma linguagem visual e ritmicamente diferente da que predominava na cinematografia nacional até então. Se “Alice Júnior” pode ser visto como demasiadamente distante de “Cidade de Deus” para ser considerado seu sucessor direto, talvez seja mais apropriado dizer que trata-se um fruto do legado publicitário deixado pela retomada.
Evidentemente, para que tal linha de raciocínio faça sentido não seria suficiente que essa linguagem se limitasse às intervenções que tentam transpassar para a tela a lógica das redes sociais, até porque elas predominam apenas até certo ponto da narrativa. A linguagem, no entanto, segue em vento de popa durante a hora e meia de “Alice Júnior”, desde a apresentação do luxuoso condomínio da personagem principal em Recife até o retrato das readequações que ela precisa fazer em sua vida quando seu pai temporariamente se muda para a pequena (e fictícia) cidade de Araucária do Sul, levando-a junto para estudar ali durante um ano. Como de praxe na publicidade, a música presta sempre um papel importante nas introduções e transições, aqui com uma seleção que foca no repertório nacional e vai do mangue-beat ao atual funk carioca.
É a esse processo de adaptação a uma nova realidade, em verdade, que a produção se dedica com maior afinco. Em meio a seus anos de formação, de sua adolescência, Alice é objeto de uma brusca mudança de realidade, de uma capital na qual se sentia acolhida e adaptada para uma cidadezinha interiorana conservadora na qual é vista com desconfiança. Nesse processo pesa o fato da personagem ser uma jovem transgênero; o preconceito sofrido na comunidade de Araucária é o grande antagonista do filme, materializado por colegas, professores e até mesmo pela diretora do colégio. Mesmo que esses conflitos sejam transmitidos pelo longa à moda do bullying nos filmes colegiais estadunidenses (dos quais “Alice Júnior” drena inspiração assumidamente), o teor da violência cometida se relaciona diretamente à realidade da protagonista.
Não se resume a uma violência física, mas a todos os desdobramentos que esse ambiente hostil tem sobre Alice; violência psicológica, simbólica, que sufocam a personagem de maneira acachapante. Cada pronome propositalmente errado dito em diálogos com a personagem pesa para ela e para o espectador, cada vigília imposta quando ela tenta ir ao banheiro, cada utilização de seu nome morto pelos professores estão no filme a serviço de tentar causar ao espectador médio o desconforto inerente de uma pessoa que é a todo tempo negado o direito do respeito mínimo, básico.
O respiro está nas amizades que Alice gradualmente faz, vindas dos mais diversos estratos sociais que habitam o ambiente escolar; da aluna excluída ao casal descolado, passando pelo colega LGBT que mantém-se discreto ao máximo visando sua própria segurança e até mesmo personagens que ainda estão em processos de descoberta pessoais. A relação familiar também possui um grande papel no longa – Jean, pai da protagonista, em verdade tem aqui um espaço considerável, não apenas no desenvolvimento de sua dinâmica com a filha, como em seus próprios aprendizados em Araucária.
“Alice Júnior” pode ser lido como mais um expoente do gênero teen movie que anda em alta no cinema brasileiro de maiores proporções comerciais, em produções que funcionam como veículo promocional para jovens celebridades oriundas da televisão e a internet. Colocá-los lado a lado, no entanto, pode acabar sendo uma simplificação. O público alvo do filme de Gil Baroni parece ser um pouco mais velho; adolescentes nos últimos anos de escola, mais conscientes do debate que envolve as questões do gênero e da descoberta da sexualidade (aqui timidamente representada na busca de Alice pela oportunidade de dar seu primeiro beijo). Ambos compartilham a supracitada linguagem publicitária, mas aqui ela é utilizada de maneira mais inventiva, espontânea e menos protocolar.
Tematicamente falando, o longa em questão também toca em tópicos mais complexos do que as atuais produções brasileiras focadas no público adolescente, que em geral possuem certa ingenuidade. Apesar de ainda estar sujeito a alguns vícios narrativos e visuais do cinema jovem brasileiro, “Alice Júnior” abre um precedente otimista para que este perca um pouco dessa ingenuidade – não no sentido de se vulgarizar, até porque o filme passa longe disso, mas no de trazer a seus espectadores questões de importância social, refletindo realidades que fogem do padrão normativo exaustivamente imposto pelo teen movie.